Ah, turista,
então é isso que este país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada
[menos
que um mundo diferente, uma vida
[melhor?
"Chegada em Santos", 1952, tradução de Paulo Henriques Britto
Em novembro de 1951, a poeta americana Elizabeth Bishop embarcou em Nova
York num navio mercante para o que seria uma longa viagem em redor da
América do Sul. Aos 40 anos, acolhida nos meios especializados como
revelação promissora, ela havia publicado apenas um livro. Vivia da
fortuna
deixada pelo pai e enfrentava crises sucessivas de alcoolismo.
Desembarcou em Santos, mas seguiu de trem para o Rio de Janeiro, onde
pretendia visitar amigos americanos radicados na capital do Brasil.
Ficaria duas semanas para então retomar viagem num próximo cargueiro.
No Rio, provando da hospitalidade dos nativos, ela mordeu um caju, fruta
que lhe pareceu "indecente", e foi acometida por violenta alergia, que
deformou suas feições a ponto de impedi-la de enxergar por dias.
Escreveria depois que se afeiçoou aos brasileiros por causa das
atenções, receitas e mandingas que prodigalizaram a uma desconhecida -
uma mulher retraída, asmática, criada por familiares (a mãe permaneceu
em internação psiquiátrica a partir da morte prematura do pai) na
atmosfera exigente das
melhores
escolas da Nova Escócia, no Canadá, e de Massachusetts, nos Estados
Unidos. Aqui nos trópicos, num país "sem classe média", como ela repete
em suas cartas, numa sociedade em miniatura na qual todos pareciam
aparentados entre si, ela foi bem recebida em um círculo ainda mais
res-trito, o do grupo vanguardista, elegante e lésbico reunido em torno
de Maria -Carlota Costallat de Macedo Soares, conhecida como Lota.
O pai de Lota, José Eduardo de Macedo Soares, oposicionista na República
Velha, depois adversário histórico de Getúlio Vargas, era dono do
periódico mais influente em meados do século passado, o
Diário Carioca.
Lota havia nascido em 1910, em Paris, onde o pai se achava exilado. Era
uma mulher cultivada, que estudou no ateliê do pintor Candido
Portinari, amiga de escritores e artistas. Sem ter frequentado
universidade, foi reconhecida como arquiteta autodidata e paisagista
emérita. Tinha ao mesmo tempo uma personalidade prática, impaciente.
Deixou sua marca na paisagem e na história do Rio - apreciada até hoje
por quem desembarca em um de seus aeroportos - quando Carlos Lacerda,
seu amigo e primeiro governador (1960-4) da Guanabara, deu-lhe a missão
de criar o Parque do Flamengo.
Bishop e Lota viveram juntas durante dezesseis anos, a maior parte desse
tempo na casa modernista, envidraçada e coberta de alumínio, que Lota e
o arquiteto Sérgio Bernardes fizeram na mata de uma escarpa de um sítio
em Samambaia, na região de Petrópolis. Ali, cercada de carinho,
segurança e isolamento, a poeta americana viveu dias felizes, apesar do
alcoolismo renitente. Ali pôde cultivar o ócio - requisito que ela
destaca como imprescindível, numa das cartas, à consecução da atividade
artística, ainda que num sentido reverso: dedicação absoluta, no caso do
poeta, à feitura do poema. Grande parte de sua obra foi composta no
Brasil, sendo inúmeras as alusões a temas brasileiros.
A construção do parque no Aterro do Flamengo, se não afastou as duas
mulheres, serviu de pretexto ao afastamento. Lota ficava no Rio, onde se
entregava de maneira obstinada ao trabalho, redobrado no interminável
confronto de sua personalidade impetuosa e perfeccionista com a
politicagem administrativa. Bishop passou a viajar a Ouro Preto, em
Minas, onde havia comprado e tratava de restaurar uma edificação do
início do século xviii - a "Casa Mariana", homenagem a sua mentora, a
poeta Marianne Moore (1887-1972). Em 1966, premida pelo esgotamento da
herança familiar, sem que os prêmios literários que passara a receber
servissem de compensação suficiente, Bishop aceitou dar seu primeiro
curso acadêmico, na Universidade de Washington, em Seattle. Detestou
lecionar (tinha aversão a falar em público, mesmo os próprios poemas),
mas se apaixonou por uma jovem aluna americana que seria sua amante por
alguns anos. O caso tinha todo um aspecto escandaloso: a estudante
estava grávida quando se conheceram, chegou a morar em Ouro Preto com
Bishop e a criança, e voltou a viver em Seattle depois de uma tumultuosa
ruptura.
A saúde de Lota deteriorou, conforme ela se debatia nas escaramuças
burocráticas, prestes a romper com o próprio Lacerda, cuja estrela
política, depois do golpe de 1964, declinava depressa. Lota recebeu
diagnósticos de arteriosclerose e depressão. Numa atitude drástica,
contrária ao conselho médico, viajou para Nova York a fim de conversar
com Bishop, que foi buscá-la no aeroporto. Na manhã seguinte, 20 de
setembro de 1967, Lota ingeriu tranquilizantes em quantidade. Já quase
inconsciente quando socorrida por Bishop, que se recriminaria por ter
dormido demais, ela foi hospitalizada e entrou em coma. Morreu de
falência cardíaca uma semana depois, aos 57 anos.
Embora a maioria
dos
amigos de Lota no Rio tenha se voltado contra ela, Bishop manteve laços
com o Brasil, sobretudo com Ouro Preto, até o início dos anos 70. Aos
poucos voltou a viver na Nova Inglaterra, na companhia de outra mulher.
Foi vítima de aneurisma cerebral que a matou em 1979, aos 68 anos. Desde
então sua fortuna crítica cresce, seu nome muitas vezes é incluído
entre os dez poetas americanos mais influentes no século de Eliot, Pound
e Cummings.
Como muitos autores que parecem sentir uma necessidade quase física de
escrever, Elizabeth Bishop produziu vasta correspondência. Os trechos
aqui publicados estão no volume
Words in Air: the Complete Correspondence -between Elizabeth Bishop and Robert -Lowell,
editado por Thomas Travisano e Saskia Hamilton, publicado em Nova York,
no fim de 2008, pela Farrar, Straus and Giroux. Suas 875 páginas emulam
as 792 de outro livro epistolar, uma coletânea de cartas enviadas a
diversos missivistas, já conhecido do público brasileiro:
Uma Arte: as Cartas de Elizabeth Bishop,
que a Companhia das Letras publicou em 1995. Eventuais redundâncias
entre os dois livros foram evitadas nos trechos editados aqui, que são
inéditos no Brasil.
Robert Lowell (1917-77), o destinatário dessas cartas, foi um poeta de
estatura semelhante à de Elizabeth Bishop. Provinham do mesmo ambiente, a
elite anglo-saxã de Massachusetts. Desenvolveram líricas que evoluem
numa influência recíproca admitida por ambos, ele num registro que foi
chamado de confessional, ela praticando uma poesia mais descritiva.
Tornaram-se amigos em 1947. Assim como Bishop sofria de alcoolismo,
Lowell era sujeito a surtos de mania que também resultavam em
internações periódicas. Embora mais jovem, obteve uma proeminência
precoce que lhe permitiu ajudar Bishop, a quem indicou para sucedê-lo no
cargo de consultor de poesia da Biblioteca do Congresso. Continuaria a
patrocinar a obra da amiga junto a editores e comitês literários
americanos durante sua longa ausência. A seu convite visitou o Brasil,
com a mulher e a filha, em meados de 1962. Lowell comparou sua amizade
com Bishop à dos escritores ingleses Lytton Strachey e Virginia Woolf.
É maciça, nas cartas, a quantidade de livros e autores que os dois
poetas comentam à medida que os lêem. Trocam poemas de própria autoria,
cada um reagindo com manifestações de inveja ante a perícia do parceiro.
Como seria de esperar, há muita trivialidade. Lowell relata fofocas da
política literária americana com minúcia, num estilo enérgico e
humorístico, mas muitas vezes de referência longínqua ou cifrada para o
leitor brasileiro. Já pelo lado da poeta, o interesse não poderia ser
maior nem mais variado. Como tantos viajantes estrangeiros que
escreveram sobre o Brasil, Elizabeth Bishop exalta a natureza e deplora a
sociedade. Contra o pano de fundo da desigualdade e do atraso, seu
olhar duro logo identifica o elemento provinciano, o hábito irracional, a
desordem e a "loucura" em que vivem os brasileiros: "O Brasil é mesmo
um horror." Nem por isso ela fica insensível a certa doçura na
familiaridade, na ênfase afetiva das relações pessoais, outro traço
assíduo na historiografia que não lhe passou despercebido no cotidiano.
Em sua opinião, Gilberto Freyre é "legível", embora faça ressalva a sua
condescendência para com a escravidão. Gosta de Camões ("soberbo") e de
Vieira ("excelente"), diz que está "estudando" Fernando Pessoa. É
entusiástica quanto a
Os Sertões, de Euclides da Cunha, que considera o melhor na literatura local depois de Machado de Assis. Ficou tão encantada com
Minha Vida de Menina,
o diário de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant)
sobre sua infância em Diamantina, que o traduziu e publicou em inglês.
Escreve que João Cabral de Melo Neto é dos poucos poetas brasileiros que
de fato aprecia - os outros seriam Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira. Viu telas de Francis Bacon na Bienal de São Paulo de 1959.
Desanima de suas gestões para introduzir as amigas Clarice Lispector e
Rachel de Queiroz nos Estados Unidos. Critica os poemas concretos, que
"parecem experiências pré-1914 com uma pitada de Cummings". E conta ao
menos uma peripécia amorosa de Vinicius de Moraes, "que não consegue
parar de beber e casar".
Considere-se, no entanto, a aspereza desta passagem: "Se você nunca vê
um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom - ou se você nunca na
vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom e que Villa-Lobos é o
maior etc." O principal valor destas cartas talvez se deva à posição
privilegiada da autora ao contemplar o panorama brasileiro nos "anos
dourados" das décadas de 50 e 60. A crítica é unânime em ressaltar,
entre as qualidades literárias de Bishop, a precisão verbal e a
profundidade descritiva. Tinha, além disso, o olho treinado de uma
turista quase profissional, tomada pelo demônio geográfico que a fez
viajar como nômade pela vida afora e espalhou topônimos e
estrangeirismos ao longo de sua obra, na qual o deslocamento é tantas
vezes assunto. Algo em sua atitude para com o Brasil tinha a
imparcialidade da indiferença: ela desceu na primeira escala do navio e
permaneceu ostensivamente por causa da paixão por Lota. Pouco do que vê,
ouve e lê, num lugar onde a competição rarefeita lhe parecia induzir à
preguiça, passa pelo rigor de seu crivo.
Apesar de certo folclore diáfano no qual figuram verdadeiros clubes de
lesbianismo clandestino no Rio de Janeiro da década de 50 - casas de
praia alugadas por mulheres galantes em recantos ermos, onde se reuniam
irmanadas na cumplicidade de suas inclinações, parte das convidadas em
vestidos longos, parte envergando terno e gravata -, nada disso nem
sequer é sugerido nas cartas desta narradora pudica e, à sua maneira,
puritana. Por motivos de gosto e até de geração (ela nasceu em 1911),
toda conotação sexual é omitida e qualquer explicitação nesse sentido é
condenada, como nas passagens em que parece recriminar as novas maneiras
que anunciavam a revolução sexual entre os estudantes dos anos 60.
O feminismo, que tanto ajudaria a alavancar a reputação póstuma de sua
obra, não exerceu apelo sobre Bishop. Como é comum entre poetas, ela não
se interessava por política nem tampouco a compreendia. Suas opiniões a
respeito tendiam ao conservador, reflexo, talvez, do ambiente elitista
em que se formou ou de seu próprio temperamento individualista. Diante
de uma comissão de diplomatas chineses, por exemplo, que visitava o Rio
em 1961, ela conta que "pela primeira vez, eu creio, um verdadeiro
calafrio de medo e horror ao comunismo me desceu pela espinha. Eram uns
homenzinhos lúgubres de aparência ignorante, seus olhos queimando de
paixão justiceira".
Após a renúncia de Jânio Quadros e a vitória do movimento para dar posse
ao vice João Goulart na Presidência, em 1961, ela adverte o amigo: "Não
acredite no que você vir [
na imprensa] sobre 'legalidade' e
salvar a preciosa 'Constituição'! - Todos os velhos vigaristas estão
correndo de volta aos cargos o mais depressa que podem - e o pc [
Partido Comunista] agora age às claras."
Se a etnografia involuntária de Bishop é de uma objetividade quase
infalível, sua apreciação da política brasileira é sempre parcial. Numa
das cartas, depois de dizer com casualidade cômica, como se falasse de
meteorologia, que "tivemos uma revolução na semana passada", ela
explica: "O motivo pelo qual menciono isso é que um dos meus melhores
amigos aqui foi o líder da revolução que não aconteceu - um deputado e
editor de jornal que foi responsável por se livrar de Vargas no ano
passado [
1954] quase sozinho. É um homem maravilhoso, realmente
- 41, acho, muito corajoso e inteligente (...) e pode acabar sendo
qualquer coisa, claro, até mesmo ditador; católico, mas liberal."
Lowell, que conheceu Carlos Lacerda pessoalmente, tinha impressão
semelhante e notou, ao compará-lo a Robert Kennedy, "uma sensação
assustadora de ambição e poder" em torno de ambos.
A simpatia se converte em apoio apaixonado conforme o amigo se torna
governador e possibilita a Lota realizar o sonho de sua vida no
Flamengo. Enquanto isso, a polarização que conduziu ao desfecho de 1964
crescia. Em novembro de 1963 Bishop diz que "estamos esperando um
golpe [
em português]
(do presidente) a qualquer momento". Em abril do ano seguinte, logo
depois da derrubada de Goulart: "Mais de 3 mil prisioneiros apenas no
Rio. Carlos deu várias e várias ordens, nenhuma brutalidade policial
será permitida etc. - mas incidentes ocorrem com qualquer polícia."
Mais tarde, quando Lacerda, já dissidente do regime que ajudara a
instalar, articulou a Frente Ampla (1966-8) com os adversários Juscelino
Kubitschek e João Goulart, ela escreve que "Carlos traiu todo mundo de
forma horrível - depois de todos os anos de luta contra a gangue do
velho Vargas e a corrupção, de repente, por razões políticas, ele se
passou para o lado deles (e dos comunistas) outra vez." Como não poderia
deixar de ser, seus pontos de vista em tais assuntos espelham os de
Lota, que a essa altura já estava afastada de Lacerda, as relações entre
ambos praticamente rompidas.
O que vemos aqui é um Brasil duplamente remoto, focalizado a partir do
distanciamento da autora (exceto nas diatribes políticas), mas também do
afastamento de meio século decorrido desde então. Muito antes disso, a
primeira onda do modernismo brasileiro - a da geração de 1922 - havia
demonstrado a falsidade de toda arte que imitasse os moldes europeus
cultivados por uma elite estreita, enquanto o país real jazia
desconhecido. Desde Sílvio Romero e Euclides da Cunha essa descoberta
interior, na qual se confundem imensidões geográficas e sociais, seria
uma busca permanente, o Santo Graal - o muiraquitã da cultura brasileira
rumo à utopia da sua própria realização.
Elizabeth Bishop chegou quando se esboçava o período que muitos
consideram uma renascença tropical, época de reinvenção nacional no
romance, na poesia, no cinema, na arquitetura, no teatro, na música
popular. O vetor mais arcaico e o mais dinâmico na sociedade - expressos
em antagonismos como sertão/litoral, folclórico/moderno, passado/futuro
- eram mobilizados pela primeira vez numa síntese artística original e
poderosa, que prenunciava a síntese social a ser produzida pelas
reformas que a ruptura de 1964 afinal frustrou. Era como uma promessa
suspensa a meio caminho, admirável e arruinada. Sob um enfoque menos
peremptório ou mais cumulativo dos acontecimentos conforme eles se
distanciam no tempo, a leitura atual das cartas brasileiras de Elizabeth
Bishop - com seu frio discernimento sobre tudo o que não seja política -
parece deslocar a posição daquela fase dourada na História: não tanto
um apogeu seguido de prematuro declínio, mas ainda a turbulenta
adolescência de uma sociedade que continua em formação.
a/c de Macedo Soares
rua Antônio Vieira 5, Leme
Rio de Janeiro, Brasil
21 de março de 1952
Querido Cal
[1],
Puxa, comecei esta carta ontem & fui interrompida & deixei a
máquina de escrever descoberta durante a noite & acabei tendo de
tirar de cima dela uma teia de aranha grande e espessa. Tenho uma carta
sua escrita no dia 6 de novembro. Acho que escrevi para você mais ou
menos na mesma época - escrevi umas duas vezes, mas não sei se você
chegou a receber alguma delas -, acabei de receber a carta de 6 de
novembro, uma semana atrás mais ou menos, e logo depois chegou a carta
de 16 de fevereiro. A primeira aparentemente ficou naquele lote de
cartas que o
Vassar Club deixou metido no escaninho por mais de
três meses. Bem, me desculpe. Eu estava morrendo de vontade de receber
notícias suas, sem saber se o American Express em Amsterdã encontraria
você ou não etc. (Foi para lá que mandei uma carta, eu acho.) Comecei
com a intenção de percorrer o continente inteiro, mas parece que virei
uma brasileira caseira e agora fico tão agitada com uma viagem de jipe
para comprar querosene num vilarejo vizinho quanto ficava em novembro
com a idéia da minha viagem em torno do cabo Horn. Eu não tinha nenhum
interesse especial pelo Brasil, no início, mas foi a primeira parada do
navio cargueiro em que eu viajava. Na verdade, queria viajar pelo mundo e
terminar a viagem mais ou menos por agora, visitando
você, mas aconteceu que cometeram algum engano com as minhas reservas
naquele
cargueiro e assim, por acaso, acabei ficando na América do Sul. Tenho
uns amigos brasileiros no Rio, que conheci em Nova York, e assim fui com
a intenção de ficar duas semanas para visitá-los e acabei ficando
quatro meses. Mas não tenho ficado muito tempo no Rio - vou lá só para
cortar o cabelo e tratar do meu visto, de vez em quando. Lota de M. S.,
minha anfitriã, tem um apartamento lá, na famosa praia de cartão-postal,
mas passa a maior parte do tempo no campo, se bem que essa palavra
delicada dificilmente se adapte ao caso, Petrópolis, uma estação de
veraneio nas montanhas, rústica e deslumbrante, a uns 65 quilômetros de
distância. Ela está construindo uma ca-sa ultramoderna na encosta de uma
montanha de granito preto, com uma cascata na ponta, as nuvens invadem a
sala no meio da nossa conversa etc. A casa está inacabada e usamos
lampiões de querosene, não tem assoalho - só cimento coberto por pegadas
de cachorros. A "família" consistia em uma outra garota americana,
também amiga minha em Nova York, uns condes poloneses por um tempo, o
arquiteto
[2] nos fins de semana etc., todos numa
estranha miscelânea de três ou quatro línguas, que me agrada muito.
Depois de algumas semanas de chuva (que, por alguma ilusão racial, acho,
são chamadas de "verão" [sic]), a cozinheira foi embora e durante mais
ou menos um mês eu cuidei da cozinha. Gosto de cozinhar etc., mas não
estou acostumada a enfrentar os ingredientes em estado bruto, todos com
casca, crus, com pele ou ainda vivos. Pois é, agora posso cozinhar carne
de cabra - com molho ao vinho. E estamos com uma nova cozinheira, do
"Norte" (o "Norte" é encarado mais ou menos como nós encaramos o "Sul"),
que chegou munida de um enorme crucifixo cromado. Ela "adora a
natureza", assim a gente espera que ela fique aqui. Mas ela gosta tanto
da natureza que, quando a gente precisa dela, em geral está lá fora
colhendo flores na montanha. A cozinha seria aprovada por Max Schling,
com orquídeas e tudo o mais. Esta manhã resolvi que eu queria um ovo.
Falei cinco minutos, o ovo veio muito mole e ela disse que na cozinha há
dois relógios que não estão andando exatamente juntos e então ela não
tinha como medir o tempo do cozimento do ovo, é claro.
Quando começo a descrever, acho difícil parar, como você está vendo, mas
estou passando uma temporada muito boa mesmo e só vou voltar porque
ainda quero conhecer mais coisas da América do Sul e escrever mais um
pouco sobre o assunto. Tenho de fazer uma apresentação em Bryn Mawr, em
maio. Vou partir daqui a um mês, mas provavelmente vou retornar para cá
em julho. Então, acho que no próximo inverno eu já vou ter visto o
bastante por um tempo e também já vou ter economizado dinheiro bastante
para viajar para a Europa, daqui provavelmente, ou então de Buenos
Aires. Não sei se você ia gostar, e na verdade vi muito pouca coisa do
país, e é tão extraordinário. Provavelmente é demasiado informe para
você e as pessoas não são em número suficiente. Lota conhece "todo
mundo" - conheci ou vi muitos dos luminares da literatura -, mas ela
vive "retirada", como diz, e bastante farta do Brasil, como todos os
brasileiros que conheci. Eles desejam: 1) Paris; 2) Nova York. (NY é um
gosto recente, só uns dez anos de idade - antes, era considerada
excessivamente vulgar e Lota foi muito criticada por passar mais de dois
anos lá.) Há um grande renascimento do catolicismo pelo que vejo e
famílias grandes são o estilo predominante: dez ou doze. Todos os
meninos se chamam "José" alguma coisa e todas as meninas se chamam
"Maria" alguma coisa. Esses nomes são sempre abreviados em apelidos
absurdos que pegam para a vida toda. Conheci um muito elegante, "Magu",
para Maria Augusta - ou "dona Bebê", para uma senhora idosa. Eu agora
sou a "dona Elizabétchi". Bem, eu não me incomodaria com as famílias
grandes se ficassem restritas à classe alta (e como tudo fica simples
quando não existe classe média). Por fim, recomecei a escrever -
terminei dois poemas compridos. Não tenho lido grande coisa, apesar de
termos aqui uma biblioteca excelente - agora ando lendo um pouco de
poesia portuguesa. Consigo ler porque sei espanhol, mas não consigo de
maneira alguma pronunciar os versos - todo mundo que encontro em geral
fala um inglês ou um francês excelente.
Pelo amor de Deus me mantenha informada dos seus endereços para eu poder
escrever para você, e espero que você também escreva para mim. Na certa
vou precisar disso mais do que você. Vou estar aqui até 19 de abril,
depois vou para Key West passar uma semana, depois vou passar seis
semanas no Hotel Grosvenor, na Quinta Avenida com a rua Dez. Quero ver
alguns poemas. Antonio Vieira, me diz Lota, foi um santo português menor
que "sofria de bilocação" (muito mais engraçado em francês). Agora
estou estudando os poemas do poeta português moderno mais popu-lar,
Fernando Pessoa - já ouviu falar? -, que tinha uma personalidade cindida
em quatro; escrevia quatro tipos diferentes de poesia, sob quatro nomes
di-ferentes - volumes diferentes para cada um deles -, e se suicidou
[3] em meados da década de 30, mas se estivesse vivo teria apenas a idade da senhorita Moore
[4]. Como já escrevi para Randall
[5] - talvez a cisão da personalidade seja uma coisa particularmente portuguesa -, já topei com uns casos reais desse tipo.
Ah, meu título agora é (já faz alguns meses)
A Cold Spring (Uma Primavera Fria) - há um poema também com esse título. E agora acho que vai sair em novembro.
Mande um beijo para Elizabeth. O que ela anda escrevendo? Por favor,
escreva de novo, mais cedo. Tenho um tucano - chamado Tio Sam, num
rompante de chauvinismo. Ele é maravilhoso, engole jóias ou finge
engolir, pode jogar bola com uvas e tem olhos brilhantes como luzes de
neon.
Com amor,
Elizabeth, Samambaia - o lugar onde moro, perto de Petrópolis. O
endereço é Rio. Mas você ponha os dois! Uma carta aérea aqui custa 10
centavos. Sua carta veio de navio.
28 de julho de 1953
Caríssimo Cal,
Vou ter alguns poemas em inglês e português publicados num suplemento
literário daqui - não existem revistas, assim os jornais cobrem a
literatura com graus variados de seriedade. O
poeta brasileiro
Manuel Bandeira, um homem de uns 65 anos, está traduzindo os poemas, e
traduzindo extremamente bem, eu acho. Tenho tentado retribuir a
gentileza: tenho lido um bocado de poesia brasileira de lá para cá e é
tudo gracioso, delicado, eu acho, se bem que Bandeira às vezes é
extremamente mordaz, como um Cummings mais amável. Mas não há meios de
escrever em português. No entanto, agora consigo ler Camões etc. muito
bem; ele e seus sonetos são soberbos, tão bons quanto qualquer soneto em
inglês, sem dúvida.
Porém o Brasil é mesmo um horror; mas um dia vou lhe contar mais. Você
ficaria de fato fascinado pelas histórias de família. A sociedade do Rio
é inacreditável. Proust nos trópicos com samba em vez da pequena
melodia de Vinteuil - não, isso é banal. Mas é algo assim.
Aqui eu sou "dona Elizabétchi" - sempre os prenomes. Você seria "seu
Roberto". Não, acho que como tem um diploma seria o "doutor Roberto".
"Calígula" não surpreenderia ninguém - conheço um Tácito, um Aristides,
um Teófilo, um Praxíteles - & os apelidos são maravilhosos. Magu é o
mais encantador - uma amiga chamada Maria Augusta. Lota na verdade se
chama Maria Carlota + 3 nomes.
E qual é o
seu endereço: Burlington St. ou Summit Street?
O meu é: rua Antonio Vieira 5, Leme, Rio de Janeiro. É o apartamento de Lota no Rio.
Antonio Vieira foi um excelente escritor e também um santo incomum...
Samambaia
5 de dezembro de 1953
Querido Cal,
Use uma piteira Dunhill Denicontina - mas na certa você já deve usar há
anos. Gosto muito delas e a gente pode ficar mascando enquanto
datilografa, porém as minhas agora já estão muito gastas. E a gente pode
comprar umas bem bonitas, vermelhas e azuis. Aqui a gente paga muito
caro pelos cigarros americanos. Pensei que eu sempre ia conseguir fumar
qualquer cigarro velho e gostei do Gauloise em Paris etc., mas os
cigarros brasileiros - experimentei dúzias - são de fato muito ruins. (O
melhor é o Louis xv
.) Lembro que meus amigos sempre ficaram
muito irritados quando pararam de fumar e isso agora deve ter virado um
verdadeiro vício nos eua - vejo até anúncios de cigarros de mentira para
ficar chupando. Em geral só fumo quando estou trabalhando, do contrário
são três ou quatro por dia e nunca mais de vinte. Mas aqui eu consegui
parar de beber quase completamente, o que sem dúvida é mais importante
para mim. Por aqui, ninguém pensa nisso: um drinque de uísque escocês ou
de gim com tônica, se a pessoa está tentando ser chique. A cerveja é
maravilhosa, mas eu só gosto de tomar um pouco. O resultado de ficar
tomando
cafezinhos toda hora - e mais a disenteria, que vai e
vem - é que perdi 9 quilos e continuo emagrecendo. Acredito que você
nunca me viu no meu tamanho normal.
Uma coisa boa aqui: tenho lido mais do que nunca - quase todo o Dickens,
sobre o qual estou escrevendo agora um soneto pequeno, concentrado,
& me engalfinhando com o português. Camões é muito parecido com o
que Ezra Pound diz, mas você já viu um dos seus sonetos religiosos? São
soberbos.
"Jacó e Raquel" etc. Provavelmente você conseguirá ler com toda
facilidade. Tenho de tentar escrever para Randall. Por alguma razão,
sinto que foi uma coisa muito nobre da parte dele deixar-me em
Poetry and the Age[6] e, se estou só sendo masoquista ou não, eu não sei.
Nossos melhores votos e amor para vocês dois,
Elizabeth
Samambaia
30 de novembro de 1954
Querido Cal,
Estou me dedicando, sobretudo, a uma tradução de um livro brasileiro.
[7]
Talvez eu já tenha falado com você sobre ele há muito tempo - não tenho
certeza; comecei a fazer isso só para aprender português e depois
resolvi que poderia ser uma tradução muito bem-sucedida; assim, depois
de alguns inícios frustrados já estou agora quase na metade do livro e
contratei uma datilógrafa que escreve em inglês etc. É o diário de uma
garota - um diário fictício, porém. Parece uma coisa horrível, eu
receio: uma garota entre os 12 e os 15 anos, que mora numa cidade
dedicada à exploração mineral chamada Diamantina, na década de 1890. Há
uma imensa família de tias, tios e ex-escravos, comandados por uma avó,
todos muito pobres, religiosos e supersticiosos, e a garota escrevia de
fato extremamente bem. É divertida, obstinada e as anedotas são repletas
de detalhes sobre a vida, a comida, os padres etc. Acho que você vai
gostar. Agora ela é uma viúva rica no Rio, 75 anos.
[8] O marido, de uns 80 anos, foi presidente do Banco do Brasil.
[9]
Não li muita literatura brasileira, mas este é de longe o melhor livro
que li, desde o famoso Machado de Assis, que pelo que vejo é a única
glória das letras que existe por aqui. (Minha amiga Lota tem um poeta na
árvore da família, que era de uma beleza arrebatadora, ganhou um prêmio
em um baile à fantasia, num Carnaval - disfarçado de mulher -,
escrevia poesia romântica ruim e morreu aos 22 anos dizendo "Que
pena...".)
10 de dezembro
Com muito amor e
saudades, como dizem por aqui, palavra muito bonita que parece incluir, num só, todos os sentimentos relativos a amigos distantes.
Elizabeth
Samambaia
20 de maio de 1955
Caríssimo Cal,
O jugo da igreja aqui é quase inexistente. Os pobres são batizados e
enterrados - não se casam - e o padre não vai ao cemitério. A família
vai andando devagar, debaixo de guarda-chuvas pretos, em geral levando
um caixão coberto por um papel crepom preto. No entanto, o Congresso
Eucarístico está prestes a se realizar no Rio: são esperados 600 mil
peregrinos, uma terrível falta de água, pouca comida; além do mais, o
tifo ou a febre tifóide - não sei qual dos dois - já está grassando.
Promete ser uma coisa muito, muito medieval. Certa mulher da sociedade
doou todas as suas jóias. Esqueci quanto valem agora, talvez centenas de
milhares - dois punhados de jóias para fazer o
monstrum.
Ah, e na minha carta comprida eu agradecia a você pela boneca. Na
verdade pegar a boneca na alfândega foi o que suscitou a carta (primeira
parte de abril). No caso de a carta nunca aparecer, vou repetir tudo
outra vez para você: fiquei com o embrulho aqui comigo durante duas
semanas mais ou menos e pensei que era uma outra coisa; por isso não me
dei ao trabalho de abrir até que fui para o Rio passar uns dias. É
sempre muito divertido ir à
Alfandaga (gosto muito dessa
palavra), mesmo que isso signifique toda sorte de pequenos selos,
assinaturas, carimbos de funcionários, cera de lacre etc. Era um dia
aterradoramente quente e todo -mundo estava esperando para retirar
pequenos aparelhos elétricos a um alto custo ou coisas feitas de
plástico, e um velho ao meu lado, um monte de filactérios e solidéus
etc.; assim, a boneca provocou uma enorme sensação, a única coisa
antique
em muitos anos, imagino. O homem que me atendeu teve de chamar seus
"colegas" - palavra muito apreciada por aqui - para ver e fiz o melhor
que pude no meu português trôpego para explicar o que era. No final ela
foi colocada de volta na caixa (obrigado a você também pelo bom
suprimento de papel de seda branco) e lacrada com uma porção de cera
vermelha e por selos barrocos, e fomos embora num táxi. Ela é
extraordinária e eu gostaria de saber mais a respeito disso - a respeito
dela, na verdade -, como eu disse na minha outra carta. Acho que gostei
mais da parte detrás do avental, com os lacinhos, mas as perninhas
também são muito bonitas. Eu a guardo na estante de livros do meu
quarto: uns dias de frente para o quarto, outros dias de costas, entre
um ninho de passarinho e um cachorro de barro da Bahia, e ela tem uma
ótima aparência, no seu jeito triste. O jardineiro, ao encerar o chão,
disse que ela parecia uma loura que ele conhece... (A propósito, não
tive de pagar nenhum imposto.)
Por favor, escreva uma autobiografia - ou esboços para uma
autobiografia. Os dois ou três contos desse tipo que consegui escrever
foram, de todo modo, uma grande satisfação - o desejo de pôr as coisas
no seu lugar e contar a verdade. É quase impossível não dizer a verdade
na poesia, eu acho, mas na prosa ela não pára de se esquivar da gente de
uma forma engraçadíssima. Minha tradução vai avançando devagar - a
primeira terça parte agora está em n.y. Aí pela semana que vem, mais ou
menos, vou viajar para a cidade onde tudo aquilo aconteceu, a fim de
escrever a introdução: Diamantina. Hoje em dia é um lugar completamente
abandonado e de imponente, lindo barroco tardio português - reboco
branco e pedra-sabão verde, chafarizes, pontes e igrejas. Cidade
absolutamente morta, embora 100 anos atrás estivesse repleta de europeus
que faziam fortuna e fosse conhecida em todo o mundo. Acho que vamos
ser ciceroneadas pelo prefeito! Eles são carentes de diversão, é
compreensível. Na minha carta que se perdeu, eu reclamava amargamente de
nunca mais ser capaz de escrever um poema decente etc. etc., e depois
de me forçar - levei cinco meses - para terminar uma coisa dura,
completamente artificial, de 32 versos, tudo acabou dando certo e agora
parece que voltei a escrever. Por favor, reze por mim para um santo
anglicano. Estou tão feliz com a sua "divulgação", e agradecida, porque
isso certamente vai ser de grande ajuda também.
Acabei de ir lá fora e gritar LUZ! para as montanhas negras, de um jeito bem diferente de Goethe
[10]
(mais parecido com Deus), e miraculosamente alguém lá embaixo, na casa,
me ouviu e ligou o gerador. Está escuro, frio e chuvoso. Um dia, um
dia, eu gostaria muito que você e E.
[11] viessem
me visitar aqui. A América do Sul é insatisfatória para quem viaja, eu
receio, mas vocês gostariam muito de algumas coisas - & temos espaço
de sobra.
Com amor,
Elizabeth
Petrópolis
23 de novembro de 1955
Querido Cal,
Dito e feito. Aqui estão o primeiro e o último poema de uma leva em que ando trabalhando. O último
[12]
eu acabei de escrever ontem & provavelmente não deveria mandar tão
cedo. Mas se ele não der certo como poema, pode dar certo como uma
carta, pois esse tipo de coisa é o cotidiano por aqui.
Tivemos uma revolução na semana passada,
[13] uma
revolução-antirrevolução, e neste exato momento a situação parece muito
ruim, apesar de ter começado de maneira muito cordial. Estamos na pior
temporada de chuvas e, como disse Lota, ninguém nem sonha em ir à rua
para lutar. A velha gangue do ditador está de volta outra vez. (Se por
acaso você ler alguma coisa sobre o assunto nos jornais, não acredite no
que dizem. O
New York Times está entendendo a situação de
forma completamente equivocada - mais um passo em favor da "democracia"
etc. Acho que nossos repórteres recebem ordens de sempre concordar com
quem estiver no poder.) O motivo pelo qual estou mencionando isso é
porque um de meus melhores amigos aqui era o líder da revolução que não
aconteceu - um editor de jornal e deputado, responsável por se livrar de
Vargas, no ano passado, quase que sozinho.
[14] É
um homem maravilhoso, de verdade - 41 anos, eu acho, muito corajoso e
inteligente, brilhante como orador e homem de tevê, que pode acabar
sendo qualquer coisa, é claro, até um ditador; católico, mas de forma
liberal. Pois bem - ele teve de fugir do país, primeiro num navio da
Marinha de Guerra (o velho us
St. -Louis, hoje
Tamandaré),
depois voltou para a embaixada cubana e agora está em Nova York. Sua
esposa e seus filhos vão partir depois. Escrevi para diversas pessoas em
Nova York e me pergunto se, no caso de ele ir para Boston, você e E.
não estariam interessados em conhecê-lo. Tenho certeza de que você ia
gostar dele e os dois iam se dar bem. Ele fala inglês e está interessado
em tudo o que existe sob o sol, além de política - acabou de construir
uma casa perto de mim, aqui no campo, e descobriu a jardinagem e a
culi-nária. Sua última viagem a Nova York durou só dois dias e de algum
jeito ainda arranjou tempo para comprar vinte frascos de temperos para
mim.
Conhece você de nome, eu sei. Mencionei você quando escrevi para ele,
mas não dei seu endereço - vou mandar depois. O endereço dele e seu
nome são: Carlos Lacerda: a/c Hugo Gouthier, cônsul, Consulado do
Brasil, 10 Rockefeller Plaza, n.y.
Ah, lembrei, foi ele que mandou para você aquela boneca pelo correio a
meu pedido. Ele conta histórias ótimas - sobre o rei Farouk num
piquenique etc. Estou escrevendo para Agnes Mongan também. Ela o
conheceu quando esteve aqui. Não creio que você vá achar isso um fardo, e
ele vai fazer umas transmissões de rádio etc. em
American Life e eu quero mostrar para ele o lado "espiritual" disso. Esconda aquele automóvel!
Estou mergulhada até o pescoço, ou mais ainda, no segundo volume da vida de Freud.
[15] É maravilhoso e assustador, embora o doutor Jones seja sem sal e dê um trabalho danado para ler.
Com amor para vocês dois,
Elizabeth
(Manuelzinho = pequeno Manuel;
h = y, em inglês)
27 de fevereiro de 1957
Temo que hoje seja o meu último dia de paz por algum tempo. Amanhã vamos
para o Rio encontrar uma amiga americana que veio para o Carnaval - uma
senhora rica, idosa, casada várias vezes, que começou sua carreira
dirigindo uma ambulância na Primeira Guerra Mundial. Nós temos pavor de
Carnaval, mas nunca vi direito como é e esta será minha grande chance de
fazer isso. Temos lugares na arquibancada com o prefeito do Rio
[16]
etc., onde teremos de ficar durante toda a noite de domingo, enquanto
ele julga as Escolas de Samba dos negros. Porém isso é o melhor do
Carnaval. Consomem o ano inteiro todo o seu dinheiro fazendo ensaios,
fantasias, compondo canções de fato soberbas etc. Na maior parte, o
Carnaval se degenerou de forma triste. Vi um deles em uma horrorosa
noite de chuva. Foi pouco depois do filme
David & Bathsheba[17] estrear no Rio e havia milhares de d e b - e aqueles que não
eram, pareciam homens usando peitos postiços.
Uma prova final com a costureira esta tarde. Temos cinco, juro,
trabalhando para nós agora, mas ainda tenho muito receio de que aquilo
que parece chique no Rio vá parecer St. Louis de 1948, em Nova York - ou
em Boston. Vou partir daqui no dia 15 de março e sigo com a americana
para a Bahia e o Recife, depois é provável que vá para Porto Rico - se
eu conseguir convencê-la a desistir de suas idéias sobre o Amazonas. Vou
ficar uma semana em Key West, até 5 de abril - a/c senhora m.c.
Stevens, caixa postal 668. Lota e eu vamos nos encontrar em Nova York,
onde sublocamos um apartamento: endereço e telefone ignorados no
presente momento. Estou dividida entre os prazeres de ser
incansavelmente servida, ainda que de modo displicente, por todos os
nossos pequenos negros, ou fazer uns ovos mexidos
direito para
mim mesma... Lota está ansiosa para trazer alimentos para o café da
manhã. Já contei a você que da última vez que voltamos de avião
trouxemos 4 litros de leite homogeneizado na geladeira do avião e demos
uma festa de flocos de milho bem no Carnaval? Também foi um grande
sucesso.
Bem, ainda tenho de refletir mais um pouco sobre a minha vontade. Você
gostaria que eu mandasse alguma coisa? Não consigo ler Amy Lowell
[18] - embora ela pareça ser muito popular por aqui!
Lembranças para Elizabeth, e espero poder ver você em breve.
Com muito amor,
Elizabeth
Castine, Maine
3 de julho de 1957
Querida Elizabeth,
Bem, Cummings foi apresentado como alguém que era contra o comunismo
quando ainda era perigoso tomar essa posição. E lá ficamos nós sentados,
uma fileira deveras eminente e abominável - todas as idades, todos os
níveis de inocência e cinismo - enquanto Cummings lia poemas ultrajantes
e sentimentais, bons e ruins, de ambos os tipos. Cerca de 8 mil pessoas
escutavam e aqueles que não conseguiam ouvir se aglomeravam em enorme
multidão do outro lado do poço do Jardim Público para ver pinturas não
objetivistas. A revolução chegou, eu creio, embora continuemos a ser
criaturas de carne e osso.
Amor,
Cal
Primeiro de abril [
de 1958]
dia da mentira
Querido Cal,
O Rio está mais louco do que nunca. Falta água em partes da cidade e o
gás anda escasso; em cada edifício só um elevador funciona e há filas
intermináveis, quarteirões inteiros para pegar os ônibus miúdos,
cromados e brilhantes ou os bondes velhos e abertos. Eles têm setores de
primeira classe e segunda classe, embora ninguém mais preste a menor
atenção a isso. Há uns poucos ônibus elétricos enormes e novos - do tipo
caminhão com reboque, com um engate e oito rodas. São chamados
"papa-filas", como dragões. Enquanto isso o Brasil es-tá construindo uma
capital novinha em folha, longe, no interior, onde sequer existia uma
estrada, um ano atrás. Dizem que é exatamente igual a uma ci-dade de
fronteira nos filmes em cartaz, uma fileira de prédios provisórios
feitos de madeira, bares e motéis, e uma rua de lama. Eu gostaria de
ver.
Sua,
Elizabeth
Domingo, 20 de abril de 1958.
Querida Elizabeth,
Você faz as clínicas de reabilitação parecerem portos para poetas, no entanto eu agora estou bem. Ontem comecei a ler
Helena Morley.
Eu estava num quarto horroroso - consolo de lareira creme, janelas
creme de 3 metros, no quarto vizinho um professor de direito de Harvard
com depressão, lendo
Look Back in Anger e as
Decisões Inéditas de Brandeis,
[19] fazendo ruídos iguais aos de um pombo (às vezes eram pombos de verdade) e gemendo "Décadas, Oh, décadas!" e "HorrOR, HorrOR".
Helena
é de fato arrebatador; tudo é uma história. De repente percebi que
estava sublinhando quase que todas as páginas. Ela alcança tanta coisa
que um autor de verdade - andei lendo
A Princesa de Clèves e
O Pai Goriot
- não consegue em centenas de páginas. Eu gosto do "protetor", o padre
fofoqueiro, sua divertida paráfrase de contos adultos ruins e pantomimas
banais. Nem em um milhão de anos eu conseguiria a fresca naturalidade
mundana que ela tem. Sua tradução parece um original.
8 de maio de 1958
Querido Cal,
E agora os últimos boatos são de que Pound está vindo para cá. Pelo
menos um amigo telefonou do Rio na noite passada e disse que saiu uma
carta sobre o assunto no
Jornal de Letras. Ainda não vi, mas
vou tentar conseguir um exemplar hoje ou amanhã. Será possível? Pensei
que ele queria voltar direto para a Itália. Há uma enorme colônia
italiana em São Paulo e ele pode muito bem ter amigos fascistas aqui.
De fato
ele traduziu alguma coisa de Camões e agora o câmbio está extremamente
alto (mas os preços por aqui também andam altos...), então eu creio que
existem razões para que isso possa ser verdade.
Mas fico tremendamente deprimida ao pensar nele propagando mais idéias
antiamericanas por aqui, onde já existe muita gente fazendo isso... Você
soube alguma coisa a respeito? Se ele está mesmo vindo para cá, é
claro, eu gostaria de visitá-lo no Rio, ajudar a senhora P., se eu
puder, e até trazê-lo aqui, quem sabe? Mas na certa ele vai para São
Paulo; e se por acaso ele tiver visto aquele meu poema, ou a senhora P.,
talvez ele não queira me ver. Bem, se você souber de alguma coisa, por
favor, me avise... Se ele um dia vier para cá vou ter primeiro de fazer
Lota jurar que não vai se exaltar com ele, nem vai começar uma
discussão! (Sou covarde, eu sei - mas nunca vi motivo para muita
discussão sobre nada, nem sou capaz de suportar discussões.) No fundo,
espero que não seja verdade. Já existem malucos demais por aqui. Porém,
se for verdade e você souber qual o endereço dele, lá ou aqui, pode
mandar para mim, para que eu possa redigir um bilhete?
Estou feliz por ele estar livre. (E saiu uma nota antipática dele no
Times
de Londres, em que diz não estar interessado em poetas e por isso que
eles façam o favor de não incomodá-lo - só se interessa por
historiadores!)
Como você vê, não tenho muitas novidades. Estamos começando a garagem; é
mais uma ponte do que uma garagem e Lota está contente com quinze
"homem" para comandar. Parece que finalmente voltei a escrever poemas -
mas são todos poemas tão velhos que mais parece uma faxina no sótão. Só
tem um novo e é sobre Miami... Também ando escrevendo sobre a neve na
Nova Escócia - ninguém vai imaginar que estamos tendo maravilhosos dias
de inverno por aqui, nuvens & crepúsculos etc., bem aqui debaixo do
meu nariz. Nosso amigo Alfredo
[20] - a pessoa com
quem a gente acha que você podia ficar no Rio - anda grudado numa garota
americana e todo sábado ou domingo os dois vêm juntos para cá. Ela
também nasceu em Worcester. É viúva de um compositor brasileiro -
ex-comunista, agora católica e escreve romances
[21].
Vai me trazer um romance proletário para eu ler. Ah, céus. Fizemos um
lindo passeio a Teresópolis no fim de semana passado - uma pequena
cidade nas montanhas, muito mais alta e mais fria, batizada em homenagem
à esposa de dom Pedro, assim como Petrópolis recebeu esse nome em
homenagem a ele. Eu gostaria que você visse aquele cenário - e vou
incluir na carta um cartão-postal muito ruim para lhe dar uma idéia, se
eu conseguir lembrar onde pus. Tem um jeito de coisa chinesa: picos
finos como dedos, uma lua nova vermelha e embaixo um rinque de patinação
com homens jogando hóquei em patins - todos de uniforme de cetim verde
ou vermelho. Lota disse para Alfredo não ser um "motorista no banco de
trás...".
Desculpe pela carta maçante, mas com muito amor,
Elizabeth
[
Dezembro de 1958]
Querido Cal,
Este cartão veio do Japão para as montanhas do Brasil, para uma loja
japonesa - naturalmente, as montanhas não são estas. Fiquei com vontade
de escrever alguma coisa para você e isto é o que tenho à mão... O
presente foi trazido por uma certa senhora Ovalle um dia desses (na
verdade uma garota de Worcester - a tal que mora com um velho amigo de
Lota
[22] em cuja casa nós planejamos hospedar você!) - eu espero que ela
ponha no correio. (Pedi que fizesse isso.) Estou muito contente por deixar de lado o
Dr. Jivago (como escrevem os franceses) e esperar por
Dr. Zhivago.
Agora eu gostaria de também mandar para você um disco de samba que é de
fato bom e estranho, mas eu não sabia que teria a chance de lhe enviar
nada.
Lota está comprando um gato siamês, não sei se já lhe contei isso, e
resolveu lhe dar o nome de Suzuki - o que fica a alguns países orientais
de distância... Não podemos eleger Jarrell de novo e para Flannery
O'Connor (o mais cedo possível, no caso dela?) darei todo o apoio. Aqui é
lindo, mas eu e Lota estamos nos sentindo tremendamente tristes e com
muitas
saudades (palavra surrada). Ah, por favor, me conte
logo: acha que vai passar por Sevilha na sua viagem pela Espanha? Se for
assim, eu gostaria de escrever para um amigo meu que está lá, um dos
poucos poetas brasileiros que eu de fato admiro, um sujeito muito boa
praça - também fala inglês, tem um carro e sei que ficaria encantado de
receber você e até de passear com você pela Andaluzia. (Conversamos
sobre você.) (Ele também tem uma esposa, que eu receio não vá agradar a
E., além de ter já nem sei quantos filhos, nesta altura.) Seus
ancestrais são quase pré-romanos, pelo que entendi, e ele conta umas
histórias muito boas sobre a árvore genealógica da família. (O nome dele
é João Cabral de Melo Neto - o último item significa apenas "neto",
portanto você já pode ver como é.) Agora estamos de volta às montanhas
certas. "A mulher de pedra." Do jeito como você o retrata, Snodgrass
[23] é muito triste, mas a poesia dele também é. não confie no "mau poeta grisalho" - ele conta
tudo,
sabe, lamento dizer. A sua versão de tudo, a bem dizer, e nos lugares
errados. Eu gosto da piada sobre o avião - é exatamente assim que são
aqueles índios. Uma das minhas favoritas foi a do garoto na nossa viagem
que, quando pediram para posar para uma foto, educadamente tirou
todas
as roupas. (Depois fui nadar com ele.) Não sei por que não escrevi uma
carta e acabei logo com o assunto, mas por favor nunca use o endereço
acima - é apenas para uso local. (E o telefone não está funcionando
nesta semana.) Eu queria lhe contar uma boa piada brasileira - mas
acabei de ver a piada contada na
Time também -, com a esperança
de que você não leia (não tenha de ler) essa publicação abominável como
eu faço: a inflação aqui anda mesmo muito ruim - houve duas pequenas
quase revoluções. Bem, o homem que fixa o índice de reajuste dos preços
foi mandado para o enterro do papa e agora os brasileiros andam dizendo:
"Ele chegou lá e o papa pulou de xii para xxiii."
Minha campainha "hospitalar" especialmente suave me avisa que está na
hora do jantar. As estrelas estão enormes - há uma bem amarela. Tenho um
mapa celeste que mostra o céu daqui em todos os meses do ano e nunca
fui capaz de estabelecer muita correspondência entre o mapa e as
estrelas de fato - não sei se é boa idéia ter de trocar o nome de tudo o
que a gente conhece numa fase tão tardia da vida!
Com muito amor,
Elizabeth
2 de fevereiro de 1959
Querido Cal,
Passamos duas semanas muito agradáveis longe da vida doméstica - fomos
pescar e pegamos uns golfinhos enormes e outros peixes. Cabo Frio é uma
cidadezinha miserável; todas as aldeias de pescadores estão horríveis
nesta época - ao que parece, no tempo do capitão Slocum
[24]
não eram tão devastadas pela pobreza -, mas a paisagem e as praias são
de fato insuperáveis e raramente há alguém à vista. A "areia branca" de
Lota é verdadeira, mas
existem pedras também, quase como no
Maine - só que em geral com cactos gigantescos e outras plantas
esquisitas, onde era de se esperar que só houvesse pinheiros. Na véspera
do Ano-Novo, nosso anfitrião trouxe um telescópio magnífico e
observamos Marte e a Lua, houve queima de fogos e tomamos champanhe. Se
você e E. (e H)
[25] vierem, vamos fazer tudo para
levar vocês até lá para passar pelo menos um fim de semana - é uma casa
de praia muito bonita, ao estilo de Turgueniev - colunas grossas e
redondas com redes amarradas, um pátio com plantas crescidas demais e
dunas branquíssimas e mais altas do que a cidade, como "moby dicks". Um
dos dias de pescaria foi muito divertido. (Manoel, o anfitrião, tem um
barco de pesca que parece saído de um Heming-way superHemingway - embora
Manoel seja um tipo muito mais simpático.) O outro convidado, um jovem,
pescou o que até agora achamos que é o maior marlim já pescado no
Brasil. Todos ficaram muito
entusiasmados, bem diferente dos
meus dias de pescaria no Maine, em Nova Escócia ou na Flórida. Quando o
monstro foi finalmente içado a bordo todos nos abraçamos, inclusive a
tripulação, e depois tomamos uma
demi-tasse de um café gostoso.
Quando chegamos em terra, a esposa do rapaz, a cunhada e os filhos nos
receberam no cais e a esposa me disse: "Ele andava muito mal-humorado
porque não estava conseguindo pescar nada grande nesta temporada, por
isso enquanto vocês foram pescar eu fui à igreja e acendi uma vela para
ele." O fotógrafo de Cabo Frio apareceu para tirar fotos para as páginas
de esporte do Rio (ou talvez para as colunas sociais...) e ficou
tentando o tempo todo interromper a agitação e a conversa. "Atenção!
Camera!", ficou falando, enquanto se metia no nosso caminho com o seu tripé.
Com muito amor,
Elizabeth
5 de maio [
1959]
Querido Cal,
Tenho passado boa parte das últimas semanas no Rio para fazer um
tratamento dentário; é por isso que ando tão lenta para escrever para
você, se bem que levei sua última carta comigo para cima e para baixo,
em duas dessas viagens. Tenho um dentista novo e simpático - escocês,
criado no Brasil, que me serve
cafezinhos na cadeira. O clube
atlético português é um edifício do outro lado do pátio e nas nossas
sessões de manhã cedo os homens de negócios estão lá fazendo ginástica
("Ah... lá vão os tarados por ginástica", diz o dentista) ao som do
Danúbio Azul, tocado num piano. Numa extração do meu dente de siso
rachado, havia uma assistente japonesa maravilhosa, igual a uma boneca,
que tinha acabado de voltar de três anos em Yale. Adoro essa miscelânea
internacional - por exemplo, acabei de vender o meu mg para uma jovem
brasileira que trabalha na embaixada dos eua (depois de seis anos de uso
e mais dois anos antes de eu comprar; vendi pelo mesmo preço que
paguei) e tenho de esperar pelo dinheiro que vai vir do avô dela, em
Xangai. Na minha última viagem tive de almoçar na embaixada com nossa
amiga Vera
[26] - na lanchonete. Foi estranho comer
sanduíches ao estilo de lanchonete americana e ouvir tantas vozes
americanas. Tive a impressão de que conhecia todo mundo, mas não
conhecia ninguém. O adido cultural se uniu a nós; com muito medo, creio,
de que eu fosse produzir livros sobre a sua última operação, que ele me
contou. Porém parece que um funcionário itinerante do Departamento de
Estado tinha acabado de passar por lá (esqueci o nome) e, quando
perguntaram sobre você, ele ficou muito satisfeito e disse: "Esse é o
tipo de pessoa que nós queremos; quem dera mais gente boa
quisesse
fazer essas viagens etc." Portanto acho mesmo que se você ainda quiser
vir na primavera de 1960 vai ser fácil. Além disso, parece que já existe
um ótimo grupo interessado em receber você na Bahia (Salvador) - que
provavelmente seria um lugar ainda mais interessante para visitar, por
um breve tempo - e assim, por favor, vamos planejar isso. Você fez algo a
respeito disso enquanto esteve em Washington? Outro item: Vera, que
passou por aqui numa viagem, me contou que há em Porto Alegre um clube
muito grande de homens, que estudaram nos eua, chamado "O Sino Rachado".
Não sei por que quando contei isso para uns amigos, eles ficaram muito
histéricos - ao que parece há conotações obscenas em português. Ou
talvez seja por isso mesmo.
Umas noites atrás, o nosso amigo que é político e editor de jornal,
Carlos Lacerda, veio jantar. É pena que você não o tenha encontrado
quando esteve no exílio porque é um ótimo exemplo do tipo do homem de
poder - sobre o qual a maioria dos poetas é (ou sobre o qual eu sou)
muito ignorante. Enquanto ele esteve aqui a
Time não parou de telefonar pedindo uma entrevista com ele sobre o fato de, no fim das contas, Clare Boothe Luce
[27]
não vir para o Brasil. Ele foi muito astuto, mas eles não pararam de
tentar torcer seus comentários para mostrar que os comunistas americanos
estavam por trás de tudo isso, ou que havia aqui um golpe de comunistas
etc. Estou curiosa para ver se alguma coisa vai sair publicada. Por
acaso a gente também conhece o repórter - um americano de fato
psicótico, casado com uma brasileira. Ele odeia o Brasil, os judeus, os
negros e os eua também - uma escolha perfeita da
Time.
Se as próximas eleições correrem do jeito como parece que vão correr,
Carlos talvez consiga ser vice-presidente (ou até presidente, mais cedo
ou mais tarde), ou pelo menos ministro da Educação. Talvez eu consiga
que o Departamento de Es-tado do B
[28]. convide
você para vir aqui então! Ele foi muito divertido ao contar uma recente
viagem a Portugal para trazer de volta o general Delgado, que se atreveu
a desafiar Salazar nas eleições do ano passado.
[29] (Não sei se você acompanhou algum desses fatos, mas
saíram
no noticiário internacional.) Delgado é um exilado muito malvisto por
aqui, agora - e ficou três meses na embaixada do Brasil em Lisboa, antes
disso. Parece que ele quase deixou todo mundo maluco lá na embaixada,
se enfurecendo e esbravejando que era
homem, e que não admitia
ser privado de "vinho, mulheres e fados". No avião, ele quis dormir numa
cama e alguém tentou achar a sua mala, o seu pijama etc., mas ele
reagiu cheio de orgulho e disse: "Eu durmo
nu." Foi recebido no
aeroporto por um grupo muito pequeno de portugueses, jogou beijos &
chorou, enquanto gritava: "Parem! Parem! É lindo demais!"
Amor de novo,
Elizabeth
[
Papel de carta do hotel Othon Palace, decorado com arranha-céus. Uma seta desenhada por e.b. aponta para uma janela no 9º andar.]
[
São Paulo,]
24 de setembro de 1959
Querido Cal,
Depois dos nossos longos e maçantes meses de leitura, gamão, jardinagem,
culinária & leitura, a vida ultimamente anda quase fervilhante
demais. Quando voltar para a minha machina vou tentar compor isso numa
espécie de carta. Fomos a São Paulo para a abertura da Biende [
sic]
- 4 485 obras de arte -, dei minha atenção a umas 400. A melhor é de
Francis Bacon - um verdadeiro horror; as outras em geral só conseguem
dizer BU. Vamos voltar para o Rio hoje à tarde. Lota tem inúmeras tias,
tios e primos por aqui. Dos mais de 66 netos, ela é a única que não
casou & não pára de receber
congratulações por isso. Reconheci Meyer Schapiro
[30]
no saguão e tomei coragem para ir falar com ele - & ele não podia
ter sido mais simpático. Espero que possamos encontrá-lo de novo no Rio
ou lá na serra, na casa. Os Calder
[31] estiveram
por um tempo no Rio & estivemos com eles muitas vezes. Ele é muito
engraçado (mas sou a única que consegue compreendê-lo, pois ele apenas
resmunga baixinho suas tiradas espirituosas). A esposa é um pouco
parecida com o tio-avô dela, Henry James, acho! Eu queria saber se você
já voltou para casa & como está passando.
Nós vamos para Nova York em janeiro - vamos ficar até março.
Se souber de um bom apartamento para sublocar em Nova York por esse
período - digamos, alguém que queira uma pessoa para tomar conta do seu
canarinho -, por favor, me avise. Vai ser maravilhoso ver você, mas eu
gostaria que você estivesse aqui agora. A vista daqui & o meu
cérebro estão repletos de arranha-céus, igual a isto.
[32]
Com amor,
Elizabeth
[
Incluso: cartão-postal do Parque do Anhangabaú, São Paulo, uma
paisagem de letreiros em neon nos prédios altos, com os dizeres goomtex.]
Esta palavra maravilhosa (significado desconhecido para mim) fica acesa
de noite, é claro - na verdade nunca vi tantos letreiros elétricos na
minha vida. Uma empresa japonesa fabrica os letreiros & são os
maiores & melhores do mundo, creio - & e os mais incríveis.
15 de fevereiro de 1960
Querido Cal,
Os Calder estão voltando para o Carnaval. São três ou quatro noites:
bailes, gente chique, boemia, os mais famosos bailes de bichas do mundo e
desfiles - e Lota está ficando apreensiva. Sempre tentamos ir na noite
das Escolas de Samba dos negros, mas só isso - porém os Calder gostam de
ficar acordados até as seis da manhã e dançam, dançam, dançam, e bebem,
bebem, bebem... É provável que eu fique fora durante uma parte do
Carnaval - vou a Belém, na boca do Amazonas. Andamos tendo umas
atividades sociais bem estranhas, no Rio, por um breve tempo, para dar
uma mãozinha a um amigo nosso da embaixada: saímos num barco bem pequeno
para ver a baía com o ex-governador de Nevada,
[33]
sua esposa e quatro filhos... Foi muito confuso: demos a direção errada
para o capitão e fomos parar numa outra ilha; os quatro garotos enormes
ficaram de cara amarrada; de Nevada, só conhecemos Reno... O rapaz da
embaixada me disse que o governador se interessava por literatura. Não
acreditei nisso, é claro, mas nossa conversa foi mais ou menos assim:
"Soube que você escreve poemas." "Sim." "Olha, Lucius Beebe
[34]
é muito amigo meu." Coitados, eles foram mesmo muito simpáticos,
estavam a caminho do Paraguai (Lota soltou um resmungo sem o menor tato
quando lhe disseram) e agora já está acontecendo uma revolução por lá. O
homem usava uma gravata-borboleta abotoada muito esquisita e, quando
jovem, carregou ouro amarrado na cintura para a Wells Fargo.
Fomos a Cabo Frio outra vez passar o Natal e foi muito bom. Mas, para
dizer a verdade, ultimamente andamos bastante tristes. Uma de minhas
mais velhas amigas, que vinha nos visitar em abril, morreu de repente,
de um ataque do coração
[35] - em Nassau, que lugar
para morrer - e os nossos vizinhos simpaticíssimos, o melhor
historiador do Brasil e sua esposa, excelentes amigos de Lota, morreram
num estúpido acidente de avião.
[36] Um homem por
aqui, ligeiramente excêntrico, depois que dois amigos morreram de ataque
do coração, bateu com as mãos nos joelhos gordos e falou, revoltado:
"Não existe mais a menor garantia!" Uma coisa para se pensar nesse
momento.
Com muito amor, Cal (desculpe por não ter escrito antes - Lota também manda lembranças), & os melhores votos para a família.
Elizabeth
24 de fevereiro de 1960
Querida Elizabeth,
Já viu o filme franco-italiano
Orfeu Negro, sobre o seu
Carnaval? É um pouco colorido, exuberante, operístico e americano
demais, porém a história é contada com uma surpreendente ternura; a
gente se sente mesmo dentro do Carnaval e ouve a música dos seus discos.
Amor,
Cal
Abril de 1960
Querido Cal,
Esqueci de incluir isto ontem. Também me esqueci de dizer que em Belém conheci um jovem poeta, Joaquim Francisco.
[37]
Ele acabou de ganhar uma bolsa para passar um ano nos eua onde vai
estudar poesia americana. Quando o encontrei, ele não sabia para qual
universidade ia ser mandado, mas achava que ia partir do Brasil em junho
ou julho. Achei-o adorável e tomei a li-berdade de lhe dar um bilhete
para você e para uns outros poetas. Na certa ele nunca vai chegar nem a
milhas de distância de você, mas se acontecer de aparecer, acho que você
vai gostar dele. E tenho certeza de que não vai trazer nenhum incômodo -
é muito educado. Tem só 22 anos, muito bonito, gentil e conhece de cor
todos os poetas contemporâneos - o que deve lhe ter custado um enorme
trabalho, morando em Belém -, e foi muito comovente. Leva tudo isso
muito a sério e é agradável conhecer aqui alguém que acha que a poesia
americana, no presente, é melhor do que a francesa, e que você é o
melhor de todos. Agora estão fazendo uma coisa no Rio chamada
"concretismo". Parecem as experiências anteriores a 1914, com um pouco
de "transição" & Jolas, e uma pitada de Cummings. É terrivelmente
triste. Fui entrevistada sobre o assunto em Belém e falei furiosamente
que isso talvez tenha "um certo charme nostálgico", e Joaquim ficou
encantado. Durante a entrevista (foi no Carnaval) entrou no café onde
estávamos um mascarado com fantasia listrada de presidiário, que veio
direto falar comigo. Estava com máscara de Chessman
[38]
e levava um livro preto com o rótulo LEX. Abriu o -livro debaixo dos
meus olhos e disse: "Só Deus pode matar." Os dois poetas que estavam
comigo ficaram em êxtase.
Estou ficando tão maçante quanto Verlaine com as minhas mudanças de
opinião, mas me dei conta de que minhas queixas financeiras de ontem não
caem muito bem depois de meus comunicados radiantes sobre o dinheiro
que se pode ganhar no Brasil. Porém isso ainda é verdade, ando
investindo meus pequenos lucros aqui para tentar ganhar mais algum
dinheiro e, nesse caso particular, ele continuou a crescer no ano
passado. Em dois ou três anos, devo ter mais, sem dúvida.
Acho que Harriet vai ser muito bonita. Lembranças minhas para a mãe dela.
Com amor,
Elizabeth
19 de maio de 1960
Vou tentar arranjar uns exemplares para você no primeiro dia da semana.
Na semana que vem vamos para Ouro Preto (a cidade colonial mais
perfeita, uma longa viagem de um dia, daqui), para passar uns dias lá.
Ah, acho que uma vez mandei umas fotos para você de esculturas de
Aleijadinho, o último e melhor escultor do barroco brasileiro. O nome
quer dizer "pequeno aleijado"; não se sabe o que ele tinha, mas toda a
sua obra da fase final foi feita, como a de Renoir, com as ferramentas
amarradas nas mãos. Ouro Preto tem igrejas inteiras feitas por ele -
pequenas, mas lindas.
Mande meu amor para as suas senhoras - e muito para você também.
Elizabeth
J
(Continua na próxima edição de
piauí.)
[1] Cal, de Calígula, era o apelido que Robert Lowell tinha desde a infância devido ao seu temperamento difícil.
[2] O brasileiro Sérgio Bernardes (1919-2002).
[3] Na verdade, Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática, em 1935.
[4] A poeta americana Marianne Moore (1887-1972).
[5] O poeta americano Randall Jarrell (1914-65).
[6] Este livro de Randall Jarrell, de 1953, inclui a resenha dele de
North & South, de Elizabeth Bishop.
[7] Minha Vida de Menina (RJ: José Olympio, 1942) foi traduzido sob o nome
The Diary of "Helena Morley" (Farrar, Straus, and Cudahy, 1957).
[8] Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970).
[9] Augusto Mário Caldeira Brant (1876-1978).
[10] Dizem que as últimas palavras de Goethe no leito de morte foram "Luz, mais luz!".
[11] A crítica, ensaísta e editora Elizabeth Hardwick (1916-2007), casada na época com Robert Lowell.
[12] "Manuelzinho".
[13] Refere-se ao movimento do ministro da Guerra,
marechal Lott, para garantir a posse de Juscelino Kubitschek, ameaçada
por um movimento militar e civil no qual se destacava Carlos Lacerda.
[14] Carlos Lacerda.
[15] Ernest Jones,
A Vida e a Obra de Sigmund Freud (1989).
[16] Francisco Negrão de Lima (1901-81).
[17] Davi e Betsabá, dirigido por Henry King (1951).
[18] Amy Lawrence Lowell, poeta americana (1874-1925).
[19] Look Back in Anger, peça do dramaturgo inglês John Osborne (1929-84), intitulada em português
Geração em Revolta.
The Unpublished Opinions of Mr. Justice Brandeis: The Supreme Court at Work é de -Alexander M. Bickel e Louis Dembitz Brandeis (1957).
[20] O escritor católico Alfredo Lage (1904-1973).
[21] Virginia Peckham Ovalle foi casada com o compositor e poeta Jayme Ovalle (1894-1955). Autor de
O Santo Sujo: A Vida de Jayme Ovalle (2008), o jornalista Humberto Werneck esclarece que, depois de viúva, Virginia teve um "breve
affair, sem maiores consequências", com Alfredo Lage.
[22] Segundo Humberto Werneck, Virginia Ovalle nunca morou com Alfredo Lage.
[23] O poeta americano William DeWitt Snodgrass (1926-2009).
[24] Joshua Slocum,
Sailing Alone Around the World (1900).
[25] Elizabeth Hardwick e a filha dela com Lowell, Harriet.
[26] Vera Pacheco Jordão (1910-1980), jornalista e escritora, foi casada com o editor José Olympio.
[27] A mulher de Henry Luce, o criador e dono da revista
Time.
[28] Ministério das Relações Exteriores.
[29] Humberto da Silva Delgado concorreu à
presidência de Portugal com o almirante Américo Tomás, candidato de
António de Oliveira Salazar nas eleições de 1958. Depois que perdeu, ele
foi expulso das Forças Armadas e pediu asilo na embaixada brasileira,
antes de partir para o exílio.
[30] Meyer Schapiro (1904-1996), crítico de arte.
[31] Louisa James Calder e o artista plástico americano Alexander Calder (1898-1976).
[32] O papel de carta é enfeitado na margem esquerda e embaixo com imagens de arranha-céus, que invadem o texto de e.b.
[33] Charles H. Russell (1903-1989), governador de
1951 a 1959, que liderava a missão da International Cooperation
Administration para o Paraguai.
[34] O colunista de moda Lucius Beebe (1902-1966) publicou um livro de poemas,
Corydon and Other Poems (1924).
[35] Marjorie Carr Stevens morreu em 21 de outubro de 1959.
[36] Octávio Tarquínio de Sousa e sua esposa, a escritora Lúcia Miguel Pereira, morreram em 22 de dezembro de 1959.
[37] Joaquim Francisco Coelho.
[38] Caryl Chessman, escritor condenado à morte, cujo caso se tornou célebre para os oponentes da pena capital.