Numa
véspera de natal, eu no mercadinho de Botafogo, no Rio de Janeiro,
acompanhada de uma sobrinha de nove anos, quando sinalizei um táxi que
parou. Era um senhor de uns sessenta e cinco anos. Reproduzirei aqui e
na íntegra nosso diálogo: Boa tarde, o senhor poderia abrir a mala para
que eu possa pôr as compras? “Vai pra onde?” Por quê? “No morro eu não
vou, no morro eu não levo. É no morro?” Não, é no Recreio. “No Recreio
eu levo.” Mas eu não vou com o senhor. Não ando com preconceituoso.
Claro que dói saber que essa cena ainda cabe num Brasil recente, no
Brasil de agora. Na hora fiquei estarrecida, quase imobilizada. Só
depois, refletindo sobre o fato, é que percebi a escrotidão da cena e me
arrependi de não ter tido a iniciativa imediata de anotar a placa e dar
um susto de civilidade naquele cidadão. Observei a sua falta de
constrangimento, sua cara-de-pau, seu desplante, a inabalável certeza de
que ser neguinha certamente só podia significar morar no morro e por
isso merecer seu profundo desprezo. Um desprezo quase lícito para ele,
justificado. Eu desconfio que se eu fosse loira ele não teria arriscado
com tanta folga. Esse senhor não era racista exatamente, era folgado,
espalhado, excedendo ao preconceito. Me fixei no desdém, na
descidadania que é oferecida aos que moram nas favelas, e pagam a mesma
bandeirada, o mesmo preço com o dinheiro da mesma cor do dos brancos ou
dos misturados, que escapam do preconceito por um olhar mais desatento.
Atordoada ainda, peguei logo atrás outro carro e contei a história.
Esse motorista então disse: “É, mas o pior é que elas “mente”: elas
“fala” que vai para a Barão de Petrópolis, chega lá e é bem no Morro do
Querosene”. Eu disse então: meu senhor, se o senhor morasse lá, onde não
há super mercados nem delivery de pizza ou de farmácia, o senhor também
mentiria para ter assegurado o direito de ir levar comida ou remédio
para seu filho. Ele tentou discordar, mas não tinha argumentos. Sei dos
perigos por que passam estes taxistas, é claro nas comunidades ainda não
pacificadas. Ás vezes se veem obrigados a transportar bandidos mortos
no porta-malas e outras loucuras da ficção que só costumam habitar os
filmes de guerra e ação. Mas os próprios moradores sabem como a barra
está e existe um certo respeito e uma certa tolerância da própria
bandidagem por estes
serviços que a população precisa.
Bem, escrevo isso, sabedora que temos legislar o ser humano ainda.
Que triste! Mas se não o fizermos ele fere, ofende, levianiza, calunia,
estupra, rouba e mata. E, pasmem todos, para tanto, não há classe social
definida nem alguma que se salve. Eu soube que um alto executivo de uma
multinacional, morador do Jardim Botânico , que é morro chique, foi
flagrado pela mulher abusando sexualmente da sua filha de dois anos. Com
seu
dinheiro
e poder conseguiu abafar o caso, a mulher se separou, e a justiça
exigiu que a avó, a partir daí, acompanhasse as visitas do agressor à
filhinha, sempre. Mas acho que ele deveria perder o pátrio poder, já que
feriu o cerne de sua função paterna que é proteger sua filhinha. Sei de
espaços sofisticados, salões de beleza freqüentados pela alta
sociedade, em que é necessário colar nas prateleiras os produtos
expostos, porque pessoas ricas roubam também. E são geralmente chamadas
de cleptomaníacas porque não estão no quesito necessidade.
Quero
dizer que me assusta o fato de termos que proibir que avancem sinal
quando é a hora de gente atravessar, que mostrem a notinha da compra ou
do consumo para que não se saia do recinto sem pagar, que vigiem nossos
pertences na praia enquanto vamos mergulhar. Então o que está
acontecendo? Não evoluímos nesta seara do respeito ao outro? Precisamos
ainda ser coibidos, vigiados senão fazemos loucuras? Que bicho é este o
homem, que em plena nova era, bate em mulher, estupra criancinha,
violenta moças nos matagais, mata esposa, filho, mãe e pai? Quem é este
homem que ainda se julga maior do que outro porque é branco, é rico,
porque que tem amigos no poder e por isso proteção na impunidade? Quem
este homem do Brasil e do mundo de hoje que ofende seus iguais,
discrimina e repudia homossexuais e outra diferenças normais no grande
caldeirão hibrido da humanidade? Quem é este homem que rouba o
dinheiro
do povo na cara de todos e mesmo assim se alardeia inocente, consegue
advogados de prestígio que tentarão provar a todos que a verdade
flagrada não é verdadeira?
Tudo isso, meus amigos, ainda acredito, só muito lentamente mudará.
Eu vacilei em não ter anotado a placa do infeliz racista do meu episódio
e a esta hora aplicar-lhe o um corretivo, um processo, uma pena que o
fizesse melhorar e ou reparar de algum moído o seu erro, sua ofensa a
mim e a minha sobrinha naquela noite de natal. Mas não o fiz. Fiquei
assustada, custei a entender. Porque toda vez que dou de cara, nestes
modernos virtuais tempos, com um agressor insano assim, seja ele
corrupto, pedófilo, assassino, ladrão, facista, enfim o monstro humano,
com a fera escondida mostrando as garras sem pensamento que o detenha.
Tremo. E sou obrigada a citar meu Gilberto Gil, tempo ó tempo rei ó
tempo rei, transformai as velhas formas de viver, me ensinai, ó pai, o
que eu ainda não sei.
Por outro lado, estamos perdidos entre preconceitos e contradições. O
homem que agride, rouba ou mata pode-se dizer padre, pastor, cristão. O
homem que brada contra negros ou negras, muitas vezes se sente por
estes atraídos e cria dentro de si uma guerra invertida que nascera do
enrustimento desse tesão. Outros, bradam contra homossexuais, “mulheres
lésbicas, Deus me livre, nem pensar. Se for filha minha, eu prefiro
morrer”. No entanto, este mesmo indivíduo pode estar voltando de um
motel onde “brincou” com duas mulheres na cama. Isso significa que lá no
motel, ele sozinho com elas, sem ninguém ver, lá pode? Lá não são duas
mulheres se beijando? Ora, eu sei que esse assunto é cabeludo e que
mexe, que abala o muro protetor dos pensamentos que queremos esconder.
Mas para isso escrevo. Para mostrar o que se pretende que ninguém veja.
Abramos os nossos olhos. Pensemos o que realmente nos incomoda no fato
do outro ser preto, branco, gay ou não. Por que será que um beijo entre
pessoas do mesmo sexo ofende a ponto de chamar ao palco a fera? Porque
será que insulta alguém ver dois homens abraçados, a ponto de
machucá-los e matá-los? O que será que faz com que a TV brasileira ache
feio ver seu povo nela? Aí, a ficção enche a Bahia de Jorge Amado de
brancos, dizendo que a Bahia tem todo aquele encanto, só que sem os
pretos que são os que geram grande parte desses encantos, que o próprio
autor descreveu. Parece que estou misturando os assuntos, mas não, tudo
isto é farinha do mesmo saco. Tudo que negamos não deixa de existir
porque negamos. A civilização que tanta propaganda faz de iogurtes e
laxativos é a mesma que nos educa para a prisão de ventre: omita,
guarde, enfeze-se, trave-se, esconda-se, siga a moda de roupa,
pensamento e comportamento e tente ser feliz. Diante dessa armadilha que
preparamos para nós, salvar-se-ão aqueles que criativos tiverem a
coragem de mudar o rebolado do pensamento de serem originais, de dizer o
que pensam. Eu digo: Meu pensamento sabe rebolar. Eu sou neguinha!
FONTE: http://www.escolalucinda.com.br/alira/