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São os espantos da vida que forjam o interior da poesia
Sex, 03 de Dezembro de 2010 15:08 Rogério Pereira
Ferreira Gullar chega aos 80 anos de vida (completados em 10 de setembro) com uma vitalidade impressionante. E com o olhar ainda mais aguçado para os espantos que a vida lhe causa. É a partir destes espantos — a junção entre o inusitado e o sublime do cotidiano — que nascem os seus versos. Isso há 61 anos, desde o surgimento de Um pouco acima do chão, sua estreia poética em 1949. Agora, lança o inquietante Em alguma parte alguma, um livro repleto de perplexidades também encontradas nos poemas de Muitas vozes, de 1999. Gullar retoma (ou continua) temas que lhe são muito caros: a pequenez do cotidiano em contraposição à imensidão do universo e a passagem do tempo, refletida principalmente na morte, contra quem luta munido fortemente de belos versos. “Sei que um dia não estarei mais em nenhuma parte, senão no que escrevi. A obra é o outro corpo que criamos para permanecermos presentes quando este, de carne e ossos, desaparecer”, diz Gullar nesta entrevista concedida por email ao Pernambuco.
Ferreira Gullar é, acima de tudo, um poeta realizado. Em 2010, recebeu o prêmio Camões — considerado a mais alta distinção concedida a um autor de língua portuguesa — e é celebrado pela crítica como o maior poeta brasileiro em atividade. “Como o sentido do que escrevemos é chegar ao leitor, ao outro, ganhar um prêmio como esse (o Camões) é a comprovação de que chegamos lá”, afirma. Disso, ninguém duvida.
Em alguma parte alguma foi escrito entre 1999 e 2010. Portanto, foram onze anos trabalhando neste livro. Como se deu toda a feitura do livro? E como nascem/surgem os seus poemas?
Como costumo dizer, meus poemas nascem do espanto, ou seja, de algum fato ou descoberta que me surpreende e me mostra um lado da existência inusitado.
O senhor afirma que a poesia “lida com o acaso e a necessidade”. Qual é a necessidade que o move em direção à construção da poesia?
Não adoto método algum para escrever os poemas, antes me deixo arrastar pela descoberta que me surpreendeu e me pôs em estado capaz de escrever o poema. Não é que tenha exigência no fazer. Pelo contrário, busco dizer o que for de modo sucinto e inesperado, para que assim também surpreenda o leitor e o faça viajar comigo nesse mundo poético. O primeiro a ser surpreendido pelo poema sou eu mesmo, o primeiro leitor.
É possível criar um método para se escrever poesia? Ou é a poesia que comanda o poeta, que diz quando está pronta para vir à luz?
Como disse, não tenho método para escrever, já que o poema deve ser uma invenção inesperada. Certamente, tenho um jeito próprio de escrever, como todo poeta o tem. Não se trata de método e, sim, de modo de lidar com as palavras, já que todo poeta inventa sua própria linguagem.
Muitos escritores (principalmente prosadores) consideram a poesia um gênero literário superior aos demais. O senhor concorda?
Não se trata disso. A poesia é, na verdade, um modo especial de relacionar-se com a realidade, de inventá-la. Talvez o que a distinga dos demais gêneros seja a sua excepcionalidade e a busca do essencial.
Seus dois livros mais recentes — Muitas vozes e Em alguma parte alguma — trazem belíssimos poemas sobre a morte e a passagem do tempo. O senhor teme a morte? De que maneira o senhor a encara?
Não, não temo a morte, embora não a deseje. Sei que um dia não estarei mais em nenhuma parte, senão no que escrevi. A obra é o outro corpo que criamos para permanecermos presentes.
O senhor é reconhecido pela crítica e reverenciado pelos leitores, musicado por cantores populares, ganhou o Prêmio Camões e virou até nome de avenida, no Maranhão. A que atribui tais fenômenos? Qual a sua opinião ao ser considerado hoje o maior poeta brasileiro em atividade?
Esse reconhecimento me surpreende e me lisonjeia. Creio que se deve em parte ao que escrevo e, em parte, às circunstâncias eventuais; uma delas, ter vivido muito e me manter ligado aos problemas que afetam a todos.
Quais poetas contemporâneos o senhor lê com atenção? E qual a sua opinião sobre a produção poética brasileira?
Hoje, mais releio que leio. Mas também não releio todo dia. Passo tempo só pensando e escrevendo ou lendo sobre a atualidade política e social. Sempre li a história dos povos e do meu país. Outra leitura minha, frequente, é a das questões ideológicas .
O que significou o Prêmio Camões na sua vida de escritor?
Ganhar o Prêmio Camões foi uma coisa tão inesperada quanto gratificante. Como o sentido do que escrevemos é chegar ao leitor, ao outro, ganhar um prêmio como esse é a comprovação de que chegamos lá.
O senhor acompanha muito atentamente o mundo que o cerca. E sobre ele emite opiniões em sua crônica semanal na Folha de S. Paulo. Qual a sua opinião sobre dois temas extremamente recorrentes na sociedade: a legalização do aborto e a descriminalização das drogas?
Sou a favor da legalização do aborto, porque constato que a não legalização não impede que as mulheres, em determinadas situações, sejam levadas a praticá-lo. Nenhuma mulher aborta por prazer. Quanto às drogas, não acredito que legalizá-las seja a solução. A venda de cigarros, de remédios, de pedras preciosas não é proibida, mas existe tráfico dessas mercadorias, não existe? A descriminalização não vai acabar com o tráfico, porque ele, de fato, é mantido por quem consome drogas, já que não existe comércio, legal ou não, sem consumidor. O caminho correto, a meu ver, seria uma campanha, em âmbito nacional e internacional, de educação dos jovens.
Quais absurdos do mundo contemporâneo mais o incomodam?
Uma das coisas mais absurdas da época atual é o terrorismo. Só muito fanatismo, só muito ódio e burrice, levados ao extremo, podem explicar tamanho desatino.
Há no Em alguma parte alguma a presença de temas bastante recorrentes em Muitas vozes, especialmente a consciência da morte e a perplexidade proveniente da simultaneidade entre a vida comum e o turbilhão das galáxias. É possível ver em tais obras uma extensão, como se um livro continuasse o outro?
Sim, essa perplexidade está em mim e se mantém através dos anos. Em dado momento, por alguma razão, volta e me faz escrever sobre ela. Nisso, um livro continua o outro.
Num dos prefácios de Em alguma parte alguma, Alfredo Bosi fala da convivência amorosa e tensa de materialismo e metafísica em sua poesia. Poemas como “Off price” (“Que a sorte me livre do mercado”) e “Um pouco antes” (“Não te custará nada imaginar/ que estou sorrindo ainda naquela nesga/ azul-celeste/ pouco antes de dissipar-me para sempre”) sinalizam que o seu materialismo está em fase de sublimação ou transcendência?
Meus poemas não são expressão de uma teoria que esteja elaborando, como um filósofo. Poeta e filósofo relacionam-se diversamente com o conhecimento: um busca explicar o mundo coerentemente; o outro se espanta e constrói o poema sem se perguntar se está se contradizendo ou não. Os versos citados expressam momentos diversos da vida: um é estar livre dos condicionamentos que sufocariam a poesia; o outro, a consciência de que desaparecerei para sempre, restando, quem sabe, a lembrança de alguém, por algum tempo. Buscar a transcendência é necessidade de todos nós, o que não implica a crença em Deus.
Em Muitas vozes há um poema intitulado “Inventário”, que diz: “o Gullar que bastasse/ não nasceu”. Em alguma parte alguma traz “O duplo”, o qual indica haver “um outro/ que é mais Gullar do que eu”. Em alguma medida, tais poemas, reunidos, evocam o “Traduzirse”, e, sobre este, eu pergunto se você o inventou ou foi por ele inventado? Quem é este Gullar que, em pouco tempo, passa de inexistente a mais Gullar do que você próprio?
Não sei nem quero explicar essas coisas. Não busco coerência, não faço teoria, são espantos, constatações inesperadas.
Que conselho o senhor daria a alguém disposto a se dedicar ao ofício de poeta?
Poesia não é profissão, é destino. Que vá em frente.
*Colaborou Marcos Pasche.
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