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Santa Cruz do Capibaribe/ Caruaru, NE/PE, Brazil
Posso ser séria, brincalhona, distraída, chata, abusada, legal,ótima, travosa (como diz um grande amigo) isso depende de você, de mim, do dia ou da situação. Quer mesmo saber quem sou eu? Precisa de mais proximidade. Gosto de ler e escrever, embora nem sempre tenha tempo suficiente para tais práticas. Gosto de tanta coisa e de tantas pessoas que não caberiam aqui se a elas fosse me referir uma por uma. Acho a vida um belo espetáculo sem ensaios onde passeamos dia a dia a procura da felicidade. Para falar mais de mim profissionalmente: Sou professora. Graduada em Letras-FAFICA. Atualmente estudo sobre Leitura Literária no Ensino Fundamental. Atuo no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer




Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos, trabalho e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos deuses, períodos ordinários — onde a vida transcorre sem problemas — e as festas, os rituais, as comemorações, os milagres e as ocasiões extraordinárias, onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma, posição, perspectiva, ângulo...
Vivemos sempre entre esses momentos, como passageiros que estão saindo de um evento rotineiro para a ocorrência fora do comum que, por sua vez, logo pode tornar-se novamente rotineira e fazer parte da paisagem do nosso irreflexivo cotidiano. [...]
No Brasil, como em muitas outras sociedades, o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a obrigações e castigos... a tudo que se é obrigado a realizar; ao passo que o extra-ordinário, como o próprio nome indica, evoca tudo que é fora do comum e, exatamente por isso, pode ser inventado e criado por meio de artifícios e mecanismos. Cada um desses lados permite “esquecer” o outro, como as duas faces de uma mesma moeda. E, no entanto, os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa. Ou melhor: tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver a sua “alma” ou o seu coração. Na nossa sociedade, temos grande consciência dessa alternância, de tal modo que a vida, para a maioria de nós, se define sempre pela oscilação entre rotinas e festas, trabalho e feriado, despreocupações e “chateações”, dias felizes e momentos dolorosos, vida e morte, os dias de “dureza” e “trabalho duro” do mundo “real” e os dias de alegria e fantasia desse “outro lado da vida” constituído pela festa, pelo feriado e pela ausência de trabalho para o outro (o patrão, o Governo, o chefe, o dono do negócio etc). Realmente, na festa, comemos, rimos e vivemos o mito ou utopia da ausência de hierarquia, poder, dinheiro e esforço físico.
Aqui, todos se harmonizam por meio de conversas amenas e, na construção da festa, a música que congrega e iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo absolutamente fundamental no caso brasileiro.
No trabalho, porém, estamos martelando e construindo, batendo massa ou “batendo perna” para a companhia, para a família, para a mulher e os filhos, “para a honra da firma” ou de alguma coisa que efetivamente exige o nosso sacrifício. Para nós, brasileiros, a festa é sinônimo de alegria, o trabalho é eufemismo de castigo, dureza, suor. [...]
Todos os sistemas constroem suas festas de muitos modos. No caso do Brasil, a maior e mais importante, mais livre e mais criativa, mais irreverente e mais popular de todas é, sem dúvida, o carnaval. Aliás, nessa festa, a própria definição já perturba, pois exclui de modo sistemático todos os elementos que nenhuma festa pode dispensar e que são importantes para o seu próprio desenrolar. Quero referir-me a todos os elementos de ordem, de economia e política que o carnaval certamente implica — como todo evento especial —, mas que ficam necessariamente excluídos de sua definição. De fato, conforme sabemos como brasileiros, o carnaval não pode ser sério. Senão não seria um carnaval...
Mas como definir o carnaval? Não seria exagero dizer, é uma ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa disso, um momento extraordinário é inventado. Ou seja: como toda festa, o carnaval cria uma situação em que certas coisas são possíveis e outras devem ser evitadas. Não posso realizar um carnaval com tristeza, do mesmo modo que não posso ter um funeral com alegria. Certas ocasiões sociais requerem determinados sentimentos para que possam ocorrer como tais. Tragédias são definidas como eventos tristes e tudo que nelas ocorre de cômico deve ser inibido ou simplesmente ignorado. Carnavais e comédias, ao contrário, são episódios em que o triste e o trágico é que devem ser banidos do evento, como as roupas do rei que estava nu e não podia ser visto como tal...
Mas como é que o povo define e vê o Brasil no carnaval? Qual a receita para o carnaval brasileiro?
Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo. É, no fundo, a oportunidade de fazer tudo ao contrário: viver e ter uma experiência do mundo como excesso — mas agora como excesso de prazer, de riqueza (ou de “luxo”, como se fala no Rio de Janeiro), de alegria e de riso; de prazer sensual que fica — finalmente — ao alcance de todos. A “catástrofe” que o carnaval brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para todos. Tal como o desastre distribui o malefício ou a infelicidade para a sociedade, sem escolher entre ricos e pobres, como acontece normalmente, o carnaval faz o mesmo, só que ao contrário. [...]
Mas que é isso que o carnaval consegue fazer com o Brasil? Que extraordinário é esse que chamamos coletivamente de carnaval? Penso que o carnaval é basicamente uma inversão do mundo. Uma catástrofe. Só que é uma reviravolta positiva, esperada, planificada e, por tudo isso, vista como desejada e necessária em nosso mundo social. Nele, conforme sabemos, trocamos a noite pelo dia; ou, o que é ainda mais inverossímil: fazemos uma noite em pleno dia, substituindo os movimentos da rotina diária pela dança e pelas harmonias dos movimentos coletivos que desfilam num conjunto ritmado, como uma coletividade indestrutível e corporificada na música e no canto. No carnaval, trocamos o trabalho que castiga o corpo (o velho tripalium ou canga romana que subjugava escravos) pelo uso do corpo como instrumento de beleza e de prazer. Notrabalho, estragamos, submetemos e gastamos o corpo. No carnaval, isso também ocorre, mas de modo inverso. Aqui, o corpo é gasto pelo prazer. Daí por que falamos que “nos esbaldamos” ou “liquidamos” no carnaval. Aqui, usamos o corpo para nos dar o máximo de prazer e alegria...
Pela mesma lógica, o carnaval permite a troca e a substituição dos uniformes pelas fantasias. Sabemos que o uniforme (como todas as vestes formais do mundo diário) cria a ordem. O uniforme é uma roupa que “uniformiza”, isto é, faz com que todos fiquem iguais, sujeitos a uma mesma ordenação ou princípio de governo. Mas a fantasia permite a invenção e a troca de posições. Note-se que, no Brasil, não falamos em máscaras, mas em fantasias. O nosso termo é mais abrangente em pelo menos dois sentidos muito precisos. Primeiro, ele diz mais do que algo que serviria apenas para tapar ou disfarçar o rosto ou o nariz. Depois, porque a palavra “fantasia” tem duplo sentido. É algo em que se pode pensar acordado, o sonho que se tem quando a rotina mais nos escraviza e revolta; e também a roupa que só se usa no carnaval ou para uma situação carnavalizadora.
Assim, ela permite que possamos ser tudo o que queríamos, mas que a“vida” não permitiu. Com ela — e jamais com o uniforme —, conseguimos uma espécie de compromisso entre o que realmente somos e o que gostaríamos de ser. O uniforme achata, ordena e hierarquiza. A fantasia liberta, des-constrói, abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite e ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitos estabelecidos. Ê a fantasia que permite passar de ninguém a alguém; de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica de uma história absolutamente essencial para a criação do momento mágico do carnaval. Se no mundo diário estamos todos limitados pelo dinheiro que se ganha (ou não se ganha...), pelas leis da sociedade, do mercado, da casa e da família, no carnaval e na fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação. [...]o carnaval obriga a uma grave sinceridade. Não se pode frequentar o carnaval sem vontade. De fato, posso ir a uma cerimônia oficial, como uma formatura, posse ou casamento, sem sentir nada, até mesmo achando tudo aquilo aborrecido e maçante. Mas não posso fazer o mesmo se vou a um baile de carnaval, onde corpo e alma devem estar juntos e serei punido se me mostrar “bemcomportado”. No carnaval, nós, brasileiros, cantamos e, geralmente, podemos fazer o que cantamos, o que permite que as pessoas se olhem e, subitamente, se vejam em sua unidade como “pessoas” e em sua diversidade como membros de uma comunidade social e politicamente diferenciada. O diverso, o diferente — o universo da individualidade —, que é tão temido na vida diária, é moeda corrente no carnaval, onde todos podem surgir como indivíduos e como singularidade, exercendo o direito de interpretar o mundo do seu“jeito” e a seu modo. [...]
Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite trocar efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar” — algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações. É feminino num universo social e cosmológico marcado pelos homens, que controlam tudo o que é externo e jurídico, como os negócios, a religião oficial e a política. Por tudo isso, o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto...

DAMATTA, Roberto. Carnaval, ou o mundo como teatro e prazer. In: O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1996. p.97-104. (Adaptado).

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