Quem sou eu

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Posso ser séria, brincalhona, distraída, chata, abusada, legal,ótima, travosa (como diz um grande amigo) isso depende de você, de mim, do dia ou da situação. Quer mesmo saber quem sou eu? Precisa de mais proximidade. Gosto de ler e escrever, embora nem sempre tenha tempo suficiente para tais práticas. Gosto de tanta coisa e de tantas pessoas que não caberiam aqui se a elas fosse me referir uma por uma. Acho a vida um belo espetáculo sem ensaios onde passeamos dia a dia a procura da felicidade. Para falar mais de mim profissionalmente: Sou professora. Graduada em Letras-FAFICA. Atualmente estudo sobre Leitura Literária no Ensino Fundamental. Atuo no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

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sábado, 15 de setembro de 2012

ALGUMAS CRÔNICAS DE LUIS FERNANDO VERÍSSIMO



 A NOVATA
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Sandrinha nunca esqueceu o seu primeiro dia na redação. Os olhares que recebeu quando se encaminhou para a mesa do editor. De curiosidade. De superioridade. Ou apenas de indiferença. Do editor não recebeu olhar algum.
— Quem é você? — ele perguntou, sem levantar a
cabeça. Sandrinha se identificou.
— Ah, a novata — disse ele. — Você deve ser das boas.
Recém-formada e já botaram a trabalhar comigo. Você sabe o
que a espera?
— Bem, eu...
— Esqueça tudo o que aprendeu na escola. Isto aqui é a
linha de frente do jornalismo moderno. Aqui você tem que ter
coragem. Garra. Instinto. Você acha que tem tudo isso?
— Acho que sim.
Ele a olhou pela primeira vez. Seu sorriso era cruel.
— É o que veremos — disse. — Já vi muita gente
quebrar a cara aqui. Desistir e pedir transferência para a crônica
policial. É preciso ter estômago. Você tem estômago?
— Tenho.
Ele gritou:
— Dalva!
Uma mulher aproximou-se da mesa. Tinha a cara de
quem já viu tudo na vida e gostou de muito pouco. O editor
perguntou:
— Você já pegou o Rudi?
— Estou indo agora.
— Leve ela.
Dalva olhou para Sandra como se tivesse acabado de tirá-la do nariz. Voltou a olhar para o editor.
— Não sei, chefe. O Rudi...
— Quero ver do que ela é feita.
— Está bem.









Bobagem | Luís Fernando Veríssimo
Emocionado e um pouco bêbado, aos cinco minutos do ano novo ele resolveu telefonar para o velho desafeto.
— Alô?
— Alô. Sou eu.
— Eu quem?
— Eu, pô.

O outro fez silêncio. Depois disse:

— Ah. É você.
— Olha aqui, cara. Eu estou telefonando pra te desejar um feliz ano-novo. Entendeu?
— Obrigado.
— Obrigado, não. Olha aqui. Sei lá, pô...
— Feliz ano-novo pra você também.
— Eu nem me lembro mais por que nós brigamos. Juro que não me lembro.
— Eu também não lembro.
— Então, grande. Como vai Vivinha?
— Bem, bem. Quer dizer, mais ou menos. As enxaquecas...

Ele ficou engasgado. De repente se deu conta de que tinha saudades até das enxaquecas da Vivinha. Como podiam ter passado tantos anos sem se ver? Como tinham deixado uma bobagem afastá-los daquela maneira? As pessoas precisavam se reaproximar. Aquele seria o seu projeto para o fim do milênio. Reaproximar-se das pessoas. Só dar importância ao que aproximava. Puxa! Estava tão enternecido com as enxaquecas da Vivinha que mal podia falar.

— A vida é muito curta. Você está me entendendo? Assim não dá.

Era como se estivesse reclamando com o fornecedor. A vida vinha com a carga muito pequena. Era preciso um botijão maior, senão não dava mesmo. E ainda desperdiçavam vida com bobagem. Ele quis marcar um encontro para ontem. No Lucas, como antigamente. O outro foi mais sensato e contrapropôs hoje, prevendo que ontem seria um dia de ressaca e segundos pensamentos. E tinha razão. Ontem à noite, ele voltou a telefonar. Falou secamente. Pediu desculpas, disse que não poderia ir ao encontro e despediu-se com um formal "Melhoras para a Vivinha”. Tinha se lembrado da bobagem que motivara a briga. 







Hábito Nacional
Por uma destas coincidências fatais, várias personalidades brasileiras, entre civis e militares, estão no avião que começa a cair. Não há possibilidade de se salvarem. O avião se espatifá – e, levando-se em consideração o caráter dos seus passageiros, “espatifar” é o termo apropriado – no chão. Nos poucos instantes que lhes restam de vida, todos rezam, confessam seus pecados, em versões resumidas, e entregam sua alma à providência divina. O avião se espatifa no chão.
São Pedro os recebe de cara amarrada. O porta-voz do grupo se adianta e, já esperando o pior, começa a explicar quem são e de onde vêm. São Pedro interrompe com um gesto irritado.
- Eu sei, eu sei.
Aponta para uns formulários em cima de sua mesa e diz:
- Recebemos suas confissões e seus pedidos de clemência e entrada no céu.
O Porta-voz engole em seco e pergunta:
- E… então?
São Pedro não responde. Olha em torno, examinando a cara dos suplicantes. Aponta para cada um e pede que se identifiquem pelo crime:
- Torturador.
- Minha financeira estourou. Enganei milhares.
- Corrupto. Menti para o povo.
- Sabe a bomba, aquela? Fui o responsável.
- Roubei.
- Me locupletei.
- Matei.

Etcétera. São Pedro sacode a cabeça. Diz:
- Seus requerimentos passaram pela Comissão de Perdão e foram rejeitados por unanimidade. Passaram pelo Painel de Admissões, uma mera formalidade, e foram rejeitados por unanimidade. Mas como nós, mais que ninguém, termos que ser justos, para dar o exemplo, examinamos os requerimentos também na Câmara Alta, da qual eu faço parte. Uma maioria esmagadora votou contra. Houve só um voto a favor. infelizmente, era o voto mais importante.
- Você quer dizer…
- É. Ele. Neste caso, anulam-se todos os pareceres em contrário e prevalece a vontade soberana d’Ele. Isto aqui ainda é o Reino dos Céus.
- E nós podemos entrar?

São Pedro suspira.
- Podem. Se dependesse de mim, iam direto para o Inferno. Mas…
Todos entram pelo Portão do Paraíso, dando risadas e se congratulando. Um querubim que assistia à cena vem pedir explicações a São Pedro.
- Mas como é que o Todo-Poderoso não castiga essa gente?
E São pedro, desanimado:
- Sabe como é, Brasileiro…
O Recital
Luis Fernando Verissimo

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal — digamos, um recital de quarteto de cordas — e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então vejamos. Um recital de quarteto de cordas.

O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta platéia. São três homens e uma mulher.  A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque.  Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.

Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da platéia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...

Nisso, o quê? Qual a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da platéia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu — são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo — começa a tocar. Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o Mozart.

Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência.  Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que posa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.

Há um murmúrio na platéia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:

— Por favor...

— O quê? — diz o homem da tuba, já na defensiva. — Vai dizer que eu não posso ficar aqui?

— O que o senhor quer?

— Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.

Alguns risos na platéia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:

— Retire-se, por favor.

— Por quê? Quero tocar também.

O primeiro violinista olha nervosamente para a platéia. Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi.   Mas nunca uma tuba.

— Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart.  Não tem nenhuma parte para a tuba.

— Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.

Mais risos na platéia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camisa do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal.   O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:

— Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!

A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.

— Está bem — diz o primeiro violinista. — Vamos conversar.  Você, obviamente, entrou no lugar errado.   Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.

— Mozart não sabe o que está perdendo — diz o tocador de tuba, rindo para a platéia e tentando conquistar a sua simpatia.

Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:

—  Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.

Torna-se suplicante:

— Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de cordas. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...

Num tom sedutor, para a violista:

— Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto anti-séptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...

Finalmente, desafiador, para o violoncelista:

— Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!

O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A platéia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba pára de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"

Nisso, entra no palco uma manada de zebus.

Segurança – Luis Fernando Veríssimo
O ponto de venda mais forte do condomínio era a sua segurança.
Havia as belas casas, os jardins, os playgrounds, as piscinas, mas havia, acima de tudo, segurança.
Toda a área era cercada por um muro alto. Havia um portão principal com muitos guardas que controlavam tudo por um circuito fechado de TV Só entravam no condomínio os proprietários e visitantes devidamente identificados e crachados.
Mas os assaltos começaram assim mesmo. Ladrões pulavam os muros e assaltavam as casas.
Os condôminos decidiram colocar torres com guardas ao longo do muro alto.
Nos quatro lados. As inspeções tornaram-se mais rigorosas no portão de entrada. Agora não só os visitantes eram obrigados a usar crachá.
Os proprietários e seus familiares também. Não passava ninguém pelo portão sem se identificar para a guarda. Nem as babás. Nem os bebês.
Mas os assaltos continuaram.
Decidiram eletrificar os muros.
Houve protestos, mas no fim todos concordaram. O mais importante era a segurança. Quem tocasse no fio de alta tensão em cima do muro morreria eletrocutado. Se não morresse, atrairia para o local um batalhão de guardas com ordens de atirar para matar.
Mas os assaltos continuaram.
Grades nas janelas de todas as casas. Era o jeito. Mesmo se os ladrões ultrapassassem os altos muros, e o fio de alta tensão, e as patrulhas, e os cachorros, e a segunda cerca, de arame farpado, erguida dentro do perímetro, não conseguiriam entrar nas casas.
Todas as janelas foram engradadas.
Mas os assaltos continuaram.
Foi feito um apelo para que as pessoas saíssem de casa o mínimo possível.
Dois assaltantes tinham entrado no condomínio no banco de trás do carro de um proprietário, com um revólver apontado para a sua nuca. Assaltaram a casa, depois saíram no carro roubado, com crachás roubados. Além do controle das entradas, passou a ser feito um rigoroso controle das saídas.
Para sair, só com um exame demorado do crachá e com autorização expressa da guarda, que não queria conversa nem aceitava suborno.
Mas os assaltos continuaram.
Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de mais posses, com mais coisas para serem roubadas, mudaramse para uma chamada área de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema.
Ninguém pode entrar no condomínio. Ninguém. Visitas, só num local predeterminado pela guarda, sob sua severa vigilância e por curtos períodos.
E ninguém pode sair.
Agora, a segurança é completa.
Não tem havido mais assaltos.
Ninguém precisa temer pelo seu patrimônio. Os ladrões que passam pela calçada só conseguem espiar através do grande portão de ferro e talvez avistar um ou outro condômino agarrado às grades da sua casa, olhando melancolicamente para a rua.
Mas surgiu outro problema.
As tentativas de fuga. E há motins constantes de condôminos que tentam de qualquer maneira atingir a liberdade.
A guarda tem sido obrigada a agir com energia.

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