Quem sou eu

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Posso ser séria, brincalhona, distraída, chata, abusada, legal,ótima, travosa (como diz um grande amigo) isso depende de você, de mim, do dia ou da situação. Quer mesmo saber quem sou eu? Precisa de mais proximidade. Gosto de ler e escrever, embora nem sempre tenha tempo suficiente para tais práticas. Gosto de tanta coisa e de tantas pessoas que não caberiam aqui se a elas fosse me referir uma por uma. Acho a vida um belo espetáculo sem ensaios onde passeamos dia a dia a procura da felicidade. Para falar mais de mim profissionalmente: Sou professora. Graduada em Letras-FAFICA. Atualmente estudo sobre Leitura Literária no Ensino Fundamental. Atuo no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

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sexta-feira, 27 de julho de 2012

Márcia Castro (2012 – De Pés no Chão) - DISCO


Quatro anos após a estréia de seu primeiro CD, "Pecadinho", Marcia Castro lança novo álbum chamado "De Pés no Chão" que reforça sua personalidade marcada pela força de sua voz e a elegância e sagacidade de repertório.
A nova obra, que conta com apoio do Programa Natura Musical, é fruto de grande pesquisa realizada pela cantora baiana no cancioneiro nacional, procurando músicas que tivessem uma leitura contemporânea. Dessa garimpagem, várias pérolas surgiram, como a interpretação de “Catedral do Inferno” de Carlota e Herminio Bello, “Você Gosta”de Tom Zé e Hermes de Aquino, “Crazy Pop Rock” de Gilberto Gil e Jorge Mautner ou ainda a faixa-título de Rita Lee.
Marcia reverencia os Novos Baianos em dois momentos: com a música “29 Beijos” (Moraes/Galvão), que é uma faixa de fase roqueira do grupo em 1971 recriado por ela num híbrido de samba e tango em dueto com Helio Flanders (Vanguart) e em o megaclássico “Preta Pretinha” atravessado por espirais de trumpete da mesma dupla autoral e já incrustado no disco da virada do grupo, “Acabou Chorare” (1972). Ele vem associado ao samba duro “Gererê” do grupo Terra Samba.
Em "De Pés no Chão" também há autores contemporâneos. Marcia fez uma versão para “História de Fogo” de Otto e canta a inédita “Lougradouro” de Kleber Albuquerque. O CD é uma produção da cantora em parceria com os músicos Guilherme Kastrup e Rovilson Pascoal e tem distribuição da produtora Deck.
Sobre Marcia Desde que lançou seu primeiro CD, Pecadinho, em 2007, uma série de acontecimentos tem repercutido o nome de Marcia Castro e ampliado a expectativa em torno do novo trabalho: foi indicada ao Prêmio TIM/2008 como “Melhor cantora de pop-rock” (ao lado de Fernanda Takai e Vanessa da Mata); se apresentou no importante Montreux Jazz Festival, na Suíça; acompanhou a argentina Mercedes Sosa em sua última turnê, com shows no Brasil, Alemanha, Itália e Israel; teve a música “Queda” incluída na trilha da novela Ciranda de Pedra, da Rede Globo; e fez gravações e participações em projetos junto a ícones da música brasileira como Tom Zé, Moraes Moreira, Luiz Melodia e Jards Macalé. Tudo isso, para ficar em poucos exemplos.
Graduada na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, iniciou-se na música aos 16 anos. Em São Paulo, para onde se mudou em 2008, parece ter assimilado com maior intensidade o caráter cosmopolita da cidade. Desde então, fez residência artística no Timor Leste, uma turnê na Turquia e criou o projeto “Pipoca Moderna”, no qual promove um intercâmbio artístico com cantoras de diferentes Estados brasileiros (Maryana Aydar e Ana Cañas/SP, Rita Ribeiro/MA, Cláudia Cunha/PA e as conterrâneas Mariella Santiago, Marcela Bellas e Manuela Rodrigues) e até mesmo do exterior (caso da cabo-verdiana Mayra Andrade).

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Remédios para o professor e a Educação



O alívio para problemas como estresse e dores musculares - as maiores causas de afastamento da sala de aula - está nos mesmos fatores que garantem um ensino de qualidade

Amanda Polato (novaescola@atleitor.com.br), colaboraram Arthur Guimarães e Brígida Rodrigues


Foto: Carlos Piratininga e ilustração Cássio Bitencourt
 
O trabalho deve ser fonte de realização e prazer, mas pode causar sofrimento e enfermidades. Pesquisa NOVA ESCOLA e Ibope feita em 2007 com 500 professores de redes públicas das capitais revelou que mais da metade dos entrevistados sofre de estresse. Entre as queixas freqüentes estão dores musculares, citadas por 40% deles. Preocupa também o fato de 40% terem declarado sofrer de forma regular alguma doença ou mal-estar. Esse mal-estar docente, tão comum, ganhou até definição do pesquisador espanhol José Manuel Esteve: "Algo que sabemos que não vai bem, mas não somos capazes de definir o que não funciona e por quê".

Nos casos mais sérios, os sintomas acabam afastando os profissionais da sala de aula. No estado de São Paulo a maior rede do país, com 250 mil professores, são registradas 30 mil faltas por dia. Só em 2006 foram quase 140 mil licenças médicas, com duração média de 33 dias. O custo anual para o governo estadual chega a 235 milhões de reais - correspondente ao valor a ser destinado pelo Ministério da Educação (MEC) para construir, mobiliar e equipar 330 escolas de Educação Infantil em 2008.

O problema se repete pelo país e faz com que as doenças de quem leciona tornem enfermo o sistema de ensino. "Em todas as redes o absenteísmo preocupa porque os prejuízos para o aprendizado são muito grandes", diz Cleuza Repulho, ex-presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação e consultora de Educação Básica do MEC.

O tema vem despertando a atenção de pesquisadores. Tufi Machado Soares, da Universidade Federal de Juiz de Fora, estudou o impacto das faltas na rede mineira e constatou que os alunos da 4ª série que tinham mestres assíduos alcançaram média 15 pontos maior que a dos demais em Língua Portuguesa no Programa de Avaliação da Educação Básica de 2002.

"Todo mundo perde com os afastamentos. Mas é importante que o direito de estudar acompanhe o direito de ter condições para oferecer uma boa aula", defende Roberto Franklin de Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. Sem dúvida, o que não pode é a falta virar a única estratégia para lidar com as questões de saúde. "Entender o que causa as doenças ou contribui para que elas se manifestem requer olhar para a sociedade, para o sistema educacional como um todo e para a relação com o trabalho", avalia Iône Vasques-Menezes, da Universidade de Brasília.
MUDANÇAS NA REDE - Em Itupiranga, a diretora de ensino Rosanea apresenta as diretrizes para os coordenardores. Foto: J. Sobrinho
MUDANÇAS NA REDE Em Itupiranga, a diretora de ensino Rosanea apresenta as diretrizes para os coordenardores
Soluções para essa epidemia têm sido discutidas e colocadas em prática em diferentes níveis: secretarias criam programas de prevenção, escolas reorganizam processos e educadores buscam formas criativas de enfrentar as dificuldades do dia-a-dia. Todas elas, além de contribuir para o bem-estar e o desempenho do profissional, têm impacto positivo na qualidade da Educação. Os "remédios" prescritos -tanto no sentido de prevenção quanto no tratamento -são gestão, formação, organização do tempo, trabalho em equipe, relacionamento com os alunos, infra-estrutura, currículo e valorização social. Nenhum combate sozinho todos os sintomas, mas, associados, eles podem formar um coquetel eficaz para acabar com a situação de impotência diante de um sistema tão doente.

Apoio da direção traz segurança

Uma gestão democrática e participativa é capaz de alterar as condições de trabalho dentro da escola, como relatam Analía Soria Batista e Patrícia Dario El-Moor no livro Educação: Carinho e Trabalho (Ed. Vozes). Instituições com maior participação dos pais e da comunidade têm mais materiais de apoio ao ensino e são mais limpas, por exemplo, o que contribui para melhorar o bem-estar de quem ali leciona.

A presença de diretores e coordenadores pedagógicos que dêem suporte efetivo equipe escolar e se co-responsabilizem pelos resultados do ensino é, igualmente, fator de aprimoramento das condições profissionais. Nesses profissionais estão as respostas para dificuldades que vão de questões pedagógicas a problemas de relacionamento. É o que mostra à pesquisa Saúde e Apoio Social no Trabalho, realizada em 2006 por Rodrigo Manoel Giovanetti, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. "O apoio social tem efeitos moderadores do estresse e da síndrome do esgotamento, além de promover satisfação e produtividade", explica Giovanetti.

As investigações em escolas públicas levaram o pesquisador a concluir que, quando o diretor deixa de focar a atuação nas questões burocráticas, ele consegue tornar o dia-a-dia menos desgastante para todos. Por sua vez, os coordenadores, que também ocupam posição de liderança, têm papel fundamental no acompanhamento da prática em sala. Essa ação tem o poder de minimizar as angústias do docente diante das adversidades.

Em Itupiranga, a 630 quilômetros de Belém, uma mudança na gestão da Educação foi implantada tendo como foco a qualificação dos coordenadores pedagógicos. Três anos atrás, nem todos os 440 professores podiam contar com a ajuda desses profissionais. Desde então há encontros quinzenais para que eles recebam formação continuada com supervisão do Programa Além das Letras, do Instituto Avisa Lá. De acordo com a diretora de Ensino Rosanea do Nascimento de Lucena, antes os coordenadores não conseguiam desempenhar sua principal tarefa: organizar atividades de estudo com a equipe. "A estratégia uniu a rede e deu um suporte de conteúdo para os educadores."

Os resultados são vistos também de forma significativa na saúde do grupo. Ainda há casos de estresse e depressão entre os mais velhos, que contam com acompanhamento psicológico. "Os novos dificilmente têm problemas por sobrecarga ou frustração, já que recebem apoio à prática."

Bem-estar para quem se prepara

Os conhecimentos sobre didática avançam; a necessidade de se manter atualizado com relação aos conteúdos é constante; as salas de aula estão se tornando inclusivas; a sociedade exige cada vez mais da escola; e, por fim, há um abismo entre a formação inicial e a prática do Magistério. A pressão e a ansiedade para se adequar a tudo isso muitas vezes dão origem a doenças, mal-estar e tensão.

"O estresse aumenta quando a pessoa faz algo que não motiva. Por isso, temos investido em capacitação para dar melhor condição ao educador para se desenvolver e desempenhar sua função com prazer", afirma Marcos Monteiro, secretário-adjunto de Gestão do estado de São Paulo. Na rede paulista, na qual é altíssimo o absenteísmo por problemas de saúde, está sendo implantado um sistema de bonificação que terá entre os indicadores a assiduidade da equipe e o nível de aprendizagem dos alunos.

De modo geral, os mais inexperientes não conseguem dar conta das situações cotidianas, e muito menos das imprevistas. "Eles tendem a controlar a turma com gritaria e ofensas", afirma Gisele Levy, que concluiu mestrado sobre o tema na Universidade do Estado do Rio de Janeiro no ano passado. Ela identificou que 70% dos quadros de cinco escolas de Niterói, a 20 quilômetros da capital fluminense, apresentavam sintomas da síndrome de burnout, caracterizada por exaustão física e emocional. Em início de carreira, muitos profissionais, de acordo com Gisele, se inibem e acabam dando aulas de forma mecanizada. Em situações como essa é improvável que os estudantes avancem.

Quem encontra respostas adequadas aos dilemas da profissão consegue manter-se equilibrado e alcançar sucesso. Foi o que ocorreu com Liliane da Silva Oliveira Schanuel, de Petrópolis, a 68 quilômetros do Rio de Janeiro. Até 2006 ela trabalhava em uma escola em que não tinha ajuda para se aprimorar. Não dava para saber se eu estava indo no caminho certo. Era cansativo e estressante. Hoje ela dá aulas para a 3ª série na EM São José do Caetitu, onde a coordenação pedagógica é atuante. Lemos e debatemos sobre tudo o que nos cerca. O aprimoramento me trouxe tranqüilidade.
UMA NOVA VIDA - Para pôr fim a depressão, Valéria, que leciona em Osasco diminuiu as aulas e aumentou o lazer. Foto: Emília Brandão
UMA NOVA VIDA Para pôr fim a depressão, Valéria, que leciona em Osasco diminuiu as aulas e aumentou o lazer
Para Rosilene Ribeiro, da Secretaria Municipal de Educação de Petrópolis, a formação continuada é tão importante quanto a inicial. "Ela é útil para transformar questões cotidianas da prática em objetos de análise e reflexão". Com doutorado concluído na área, Rosilene atesta: "Os docentes planejam e avaliam com maior segurança". Aulas mais bem preparadas têm impacto no desempenho da turma e, por conseqüência, na satisfação profissional.


Horários para estudo e diversão

Uma boa forma de reduzir o cansaço físico e mental e ainda melhorar os resultados de aprendizagem dos estudantes é ter tempo para estudar, planejar e reunir-se com os colegas sem esquecer os momentos de lazer. De acordo com a pesquisa NOVA ESCOLA e Ibope, os professores gastam em média 59 horas por semana em atividades ligadas ao trabalho 50% desse tempo em sala de aula. Metade deles tem menos de seis horas por semana de lazer. Esses são os que mais apresentam sintomas de estresse como insônia e dores de cabeça freqüentes.

Há três anos, Valéria Hengleluz, que leciona em duas escolas de Osasco, na Grande São Paulo, teve diagnóstico de depressão. O maior motivo, acredita, foi a carga pesada de trabalho -70 aulas semanais em até três turnos. Quando estava em casa, ela sentia que tudo melhorava. Mas, quando o momento de retomar as aulas se aproximava, ficava aflita. Em cinco ocasiões, chegou ao portão da escola e não conseguiu atravessá-lo. "Eu tinha uma sensação de perda total, me sentia inútil, achava que ia morrer."

Valéria tirou licença médica e se afastou da EE Professor José Jorge e da escola particular em que lecionava. Para sair da crise e voltar a dar aulas, sua grande paixão, mudou a rotina: descansa mais, lê, assiste a filmes e faz caminhadas. "Antes eu quase não saía de casa. Agora, não recuso um convite para ir ao cinema." Ela definiu um limite de 40 aulas semanais de carga horária e, para se adaptar ao salário menor, reduziu as despesas pessoais.

De acordo com Beatriz Cardoso, docente da Universidade de São Paulo e coordenadora executiva do Centro de Educação e Documentação para a Ação Comunitária (Cedac), em São Paulo, a gestão do tempo não está só nas mãos do professor. Essa tarefa depende também das condições oferecidas a ele pela rede. "Nesse nível, deve-se, em primeiro lugar, optar pelo que potencializa a aprendizagem e, em segundo, considerar outras particularidades da rotina escolar", define Beatriz. E aí estão incluídas as horas de trabalho pedagógico remuneradas, essenciais para a qualidade da prática.

O poder do apoio dos colegas

Maria Elizabeth Barros de Barros, da Universidade Federal do Espírito Santo, estudou as estratégias encontradas pelos docentes a fim de promover a saúde o que, para ela, não é a ausência de doenças, mas a crença na possibilidade de acabar com o que faz sofrer. "O mais eficaz é apostar na boa relação entre os professores e construir o sentimento de grupo", aponta.

Por sua importância, o trabalho em equipe é um tema que deveria ser mais valorizado pelos gestores na opinião de Beatriz Cardoso. "É preciso pensar em meios e condições para que ele seja o mais produtivo possível." Quando há momentos de conversa e atividades coletivas, os profissionais e suas ações ficam mais fortalecidos. "Quem tenta fazer algo diferente sozinho acaba não tendo o respaldo dos colegas ou a orientação dos mais experientes", diz Maria Elizabeth. Se a troca de informações se torna prioridade no dia-a-dia da escola, surge em cada um o sentimento de que suas idéias são úteis para a produção social. Dessa forma, a prática pedagógica também é enriquecida - e os alunos só têm a ganhar.

Na EMEF Professora Altamira Amorim Mantesi, em Araraquara, a 277 quilômetros de São Paulo, o trabalho em equipe faz parte do cotidiano. "O planejamento fica bem melhor com a troca de experiências", conta Bia Pinto César, que leciona para o 5º ano. "Eu não gosto de preparar aulas baseada apenas em um livro ou uma fonte. É ótimo quando uma colega me mostra um material novo que eu não havia encontrado em minhas pesquisas. Isso faz toda a diferença na qualidade do ensino."

Bia considera o momento também um grande alívio para as pressões e cobranças do dia-a-dia: "Tenho muito mais segurança. Sem esse diálogo constante com minhas companheiras, seria bem mais difícil". A pesquisadora Maria Elizabeth acredita que no ambiente escolar pode haver espaço para choro e queixas -que aliviam a tensão cotidiana -desde que isso se torne algo positivo. "A queixa deve se transformar em alternativas para enfrentar as adversidades. Só reclamar leva a mais mal-estar", ressalta.

O melhor meio de manter a paz

A dificuldade de relacionamento com crianças e jovens em classe é a maior queixa dos professores, como mostra a pesquisa NOVA ESCOLA e Ibope. A falta de disciplina foi citada como o principal problema em sala de aula por 46% dos entrevistados. Maristela Rautta, de São Miguel do Oeste, a 693 quilômetros de Florianópolis, teve muitos momentos de estresse exatamente por causa disso. No ano passado, a professora do Grupo Escolar Municipal São João Batista de la Salle encontrou uma turma de crianças de 7 anos muito agitada. Elas subiam nas mesinhas e brigavam constantemente entre si. "A relação com as crianças é condição para a docência. Se ela está deteriorada, como ensinar? Essa é uma das razões do grande mal-estar entre os educadores", explica Inês Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para Yves de La Taille, da Universidade de São Paulo, o desrespeito é um fenômeno discutido no mundo todo e ultrapassa os limites da escola. "A ausência do senso moral, da idéia de que o outro existe e eu preciso respeitá-lo, é geral." Um dos caminhos, segundo ele, seria a escola discutir princípios de forma sistemática para que os alunos entendessem o porquê das regras. Maristela seguiu linha semelhante e encontrou uma solução para a indisciplina dentro da sala com o apoio da coordenadora, Clarisse Thums, e de toda a equipe. Ela estabeleceu regras, levou as crianças a discutir seus sentimentos em relação aos pais e à escola e a refletir sobre as atitudes de convivência.
REGRAS PARA TODOS - A indisciplina acabou na sala de Maristela, de São Miguel do Oeste, depois que atitudes foram discutidas. Foto:Silvano Caron
REGRAS PARA TODOS A indisciplina acabou na sala de Maristela, de São Miguel do Oeste, depois que atitudes foram discutidas
 
Além disso, Maristela também mudou sua forma de dar aulas - esse resgate da autoridade pelo conhecimento, segundo De La Taille, é outro ponto essencial nas relações entre estudantes e mestres. "Muitos alunos não avançavam no aprendizado, e alguns não estavam alfabetizados. Agora eu procuro desafiá-los o tempo todo. Hoje me sinto muito bem e uma profissional bem melhor", diz ela.

Boas condições, bom desempenho

O espaço da escola afeta tanto o cotidiano dos professores quanto o dos alunos. A precariedade das condições físicas dificulta as aulas, tornando-as desgastantes e reduzindo a produtividade. Mobiliário inadequado ou classes sem boa ventilação, iluminação ou acústica podem causar ou agravar problemas de saúde, como os osteomusculares ou de voz.

Rejane Cristina dos Santos, da EE Imaculada Conceição, em Pedro Leopoldo, a 46 quilômetros de Belo Horizonte, sofreu em razão das condições inadequadas do ambiente e do mau uso que fazia da voz falava alto e permanecia em contato com pó de giz por tempo demasiado. No ano passado, ficou completamente afônica durante 15 dias. Passado o susto, ela se valeu da criatividade para voltar à sala de aula: construiu painéis em que escreve com canetão e usa microfone.

Iniciativas individuais como a de Rejane são relevantes, mas cabe aos gestores da rede e da escola cuidar da questão. Há oito anos, Joice Salete Silverio Pires, da EM Marumbi, em Curitiba, começou a acordar sem voz. O problema poderia ter se agravado se a diretora não a tivesse encaminhado ao programa municipal de qualidade vocal. Ela fez um tratamento fonoaudiológico e operou nódulos nas cordas vocais. "Depois disso, a prefeitura disponibilizou um microfone para eu usar em classe", conta Joice. Além de seu bem-estar, garantiu-se, assim, a qualidade do ensino que ela ministra.
NADA DE GRITOS E PÓ - Rejane, de Pedro Leopoldo, usa painéis que dispensam giz e microfone para curar os problemas de voz. Foto: Leo Drumond / Agência Nitro
NADA DE GRITOS E PÓ Rejane, de Pedro Leopoldo, usa painéis que dispensam giz e microfone para curar os problemas de voz
Também visando à aprendizagem, o Tocantins está definindo padrões de qualidade do ambiente escolar que incluem conforto acústico, ventilação, temperatura e iluminação adequadas e acessibilidade. "Criamos políticas para reduzir os riscos para alunos e professores, pensando em saúde e Educação de forma articulada", diz Maria Auxiliadora Rezende Seabra, secretária de Educação e Cultura.

Um rumo para a prática

Ter clareza sobre o que ensinar é condição para que os docentes executem bem sua função em classe. Apresentar esses conteúdos é papel das diretrizes curriculares. "Quando há referências e metas, apontando caminhos para os quais se deve ir o professor toma decisões com maior segurança e isso tem impacto na qualidade da Educação", afirma Neide Nogueira, da equipe responsável pela elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Com a certeza de ter as condições necessárias para desempenhar bem sua função, o educador sofre menos.

Os PCNs foram elaborados com o objetivo de proporcionar uma formação ampla ao aluno, torná-lo alguém que põe o conhecimento em uso na vida social. Cada secretaria deve se apropriar dessas referências e adequá-las ao contexto local. "Cabe às escolas, por sua vez, criar um projeto pedagógico que defina priorida- des e ações", diz Neide. O ideal é que elas montem um currículo completo para que a equipe docente saiba a fundamentação teórica adotada, o histórico do ensino das disciplinas, os objetivos de aprendizagem de cada ciclo ou série, os conteúdos que devem ser trabalhados e as orientações didáticas.

Para se tornar eficaz, no entanto, um currículo precisa ser elaborado com a participação de todos os envolvidos no processo educativo. Diretrizes definidas nos gabinetes e apenas apresentadas a quem deve segui-las trazem descontentamento e mais angústia. Preocupada em atualizar a proposta curricular que tinha até então, a equipe da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande decidiu estender a discussão a todos os gestores, às equipes técnicas e aos professores, o que deu origem a um novo documento, já em fase de consolidação. "Houve encontros e debates nas escolas, até com a comunidade e os estudantes, e um forte intercâmbio", conta Leusa de Melo Secchi, técnica da divisão de Educação Infantil da rede. Para ela, o mais significativo da experiência é poder socializar conhecimentos e dividir responsabilidades. A definição coletiva do trabalho dá a tranqüilidade de lecionar sabendo exatamente onde pisar. "Todos têm o compromisso com o que foi produzido e até com os possíveis erros."

Satisfação vem com prestígio
RECEITA FINLANDESA - No país primeiro colocado no Pisa, os professores têm formação de qualidade e reconhecimento. Foto: Olivier Morin / AFP
RECEITA FINLANDESA No país primeiro colocado no Pisa, os professores têm formação de qualidade e reconhecimento
O apoio da sociedade aos educadores está diminuindo. É o que sente um terço dos professores brasileiros, segundo a pesquisa NOVA ESCOLA e Ibope. Isso acaba afetando seu bem-estar e seu desempenho em sala de aula. "A progressiva desqualificação e o não-reconhecimento social potencializam o sofrimento dos docentes", assinala Mary Yale Rodrigues Neves, da Universidade Federal da Paraíba. Quando se fala em valorização social, o sentido não deve ser apenas retórico, o que inclui homenagens e discursos em favor do Magistério. Essa é a opinião de Inês Teixeira, da UFMG: "A valorização tem de ser real. Profissional reconhecido é aquele que dispõe de boas condições de exercer sua função no dia-a- dia, salário compatível com o que se espera dele e políticas públicas que cuidem de sua formação e sua saúde".

A Finlândia, o país com a melhor Educação do mundo segundo o Pisa, avaliação feita pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, é um lugar em que a carreira docente está entre as mais concorridas e desfruta de grande prestígio. Lá, as principais apostas do sistema educacional são um currículo amplo e a formação docente. "A escola é o reflexo da sociedade na qual está inserida", conclui Inês Teixeira.
Quer saber mais?
CONTATOS
EE Imaculada Conceição
, R. Armando Filho, 80, 33600-000, Pedro Leopoldo, MG, tel. (31) 3662-1837

EE Professor José Jorge, Av. Pinheiro, 70, 06184-300, Osasco, SP, tel. (11) 3695-0395

EM Marumbi, R. Francisco Licnerski, 50, 81590-250, Curitiba, PR, tel. (41) 3364-1092

EM São José de Caetitu, Estr. do Caetitu,1036, 25720-020, Petrópolis, RJ, tel. (24) 2221-3412

EMEF Professora Altamira Amorim Mantesi, Av. Alziro Zazur, s/n°, 14806-323, Araraquara, SP, tel. (16) 3324-2887

Grupo Escolar Municipal São João Batista de la Salle, Conjunto Habitacional São Luiz, s/n°, São Miguel do Oeste, SC, 89900-000, tel. (49) 3622-7114

Secretaria da Educação e Cultura do Estado do Tocantins, Pça. dos Girassóis,s/n°, 77001-910, Palmas, TO, tel. (63) 3218-1400

Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, R. Oniceto Severo Monteiro, 460, 79002-949, Campo Grande, MS, tel. (67) 3314-3800

Secretaria Municipal de Educação de Itupiranga, Av. 14 de Julho, s/n°, 68580-000, Itupiranga, PA, tel. (94) 3333-1234

 

domingo, 22 de julho de 2012

O culto às marcas


Colunista Marcia Tiburi fala sobre a morte da expressão em tempos de fascínio religioso pelas grifes

A hipervalorização de bens ditos “de marca” é uma característica das sociedades contemporâneas.  Delas advém a distinção como forma de poder que fascina tanto ricos quanto pobres no cenário da dessubjetivação partilhada por todos, da loja de luxo ao camelódromo das falsificações.
A questão da distinção guarda em seu fundo um aspecto mais tenebroso, concernente ao presente da condição subjetiva da vida dos usuários devorados pelas antipolíticas autodestrutivas do consumismo transformado em regra.
Zerada a intersubjetividade que se definia na interação afetiva e comunicativa entre pessoas, o que resta são as coisas – e as pessoas como coisas – que podem ser compradas. Diga-se de passagem que as pessoas não compram coisas, mas sinais que informam sobre um capital simbólico. Coisificação da consciência é o nome velho para o fenômeno em que a concretude das coisas é substituída pela abstração da insígnia.
A fascinação de tantas pessoas por roupas, carros e até eletrodomésticos ditos “de marca” em nossa época é a declaração auto-exposta da morte do sujeito. Espantalhos de uma ordem que previu o assassinato do desejo, do pensamento e da liberdade – conjunto do que aqui chamamos de subjetividade – são incapazes de compreender seu descarado simulacro.
A morte por assassinato da subjetividade é percebida na redução do indivíduo a uma espécie de morto-vivo em três tempos. 1 – A destituição do direito ao próprio desejo: a publicidade colonizou a capacidade de sentir e projetar a autobiografia de cada um que é apagada na encenação da “vida fashion”. 2 – A desaparição da possibilidade de pensar: a publicidade oferece os jargões e slogans a serem repetidos sob a ilusão de ideias próprias. 3 – O direito à ideia-prática da liberdade é extirpado: resta o simulacro da escolha entre uma marca e outra. A ação torna-se acomodação ao mesmo de sempre.
A escolha entre o nada e a coisa nenhuma é bem disfarçada no poder de ostentar que promete redimir do buraco subjetivo. Não tendo mais o que expressar, alguém simplesmente “ostenta” um relógio caro, um computador moderninho, um carrão oneroso. Ou um piercing, um músculo forte. Tudo e cada coisa é reduzida à marca, emblema do capital e seu poder na era do Espetáculo.
Cultura da falsa expressão
Podemos dizer que a ostentação é a cultura da pseudo-expressão no tempo das marcas. Se o poder de ostentar é proporcional ao esvaziamento da expressão, resta perguntar o que foi feito dessa potência humana? Ora, a expressão é fator subjetivo que se cria em um contexto social e político em que está em jogo a capacidade de “dizer alguma coisa”, de “dizer o que se pensa”, o que se “deseja”.
Só que fomos privados da expressão com a derrocada da formação de sujeitos desejantes, reflexivos e livres. Se as pessoas não dizem o que pensam, é porque a capacidade de pensar e dizer lhes foi extirpada. No lugar, podem travestir-se com a insígnia do poder fundamentalista das marcas da religião capitalista. A cruz para Cristianismo, a Estrela de Davi para o Judaísmo, a Lua Crescente para o Islamismo e uma marca famosa para o servo fiel do capital.
Os jovens são as principais vítimas dessa violência. Que sejam o “público alvo” quer dizer que são a presa fácil para um tiro certeiro. Os rebanhos de zumbis nikezados, abercrombizados, macdonaldizados, são arregimentados no exército de otários das massas manobradas, paramentados para o grande sacrifício sem ritual do capitalismo, em que a subjetividade é diariamente morta a pauladas.
A saída é a arte, a poesia, a negação ativa contra o uso e o consumo de marcas. A prática anti-capitalista é um ateísmo e começa com a recusa aos seus deuses como simples profanação cotidiana.

FONTE:
http://revistacult.uol.com.br/home/2012/06/o-culto-as-marcas/

"A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito, por mais sinistro que pareça", escreveu Elizabeth Bishop a Robert Lowell a propósito do golpe militar de 1964




“Foi uma revolução rápida e bonita”

"A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito, por mais sinistro que pareça", escreveu Elizabeth Bishop a Robert Lowell a propósito do golpe militar de 1964. "De outro modo teria sido uma mera 'deposição', e não uma 'revolução' - muitos homens de Goulart continuariam lá no Congresso, todos os comunistas ricos fugiriam (como alguns fugiram, é claro) e os pobres e ignorantes seriam entregues à sua sorte"
por Otavio Frias Filho
 
 
Nesta segunda e última parte dos trechos selecionados da correspondência entre os poetas americanos Elizabeth Bishop e Robert Lowell, a crise política que agitou o Brasil no começo dos anos 60 vem para o primeiro plano. Bishop passara a viver no Rio (e em Petrópolis) em 1951; estava de passagem quando se apaixonou por Lota de Macedo Soares. Incentivadora do gosto pela arte moderna e amiga íntima de Carlos Lacerda, Lota seria incumbida por ele, governador da Guanabara a partir de 1960, de criar o parque do Aterro do Flamengo. Convocou o paisagista Roberto Burle Marx como seu braço direito, com quem depois se desentenderia.

Surpreende a veemência que uma poeta nada interessada em política, como Bishop, emprega contra os herdeiros populistas de Vargas e seus aliados comunistas. Ela reflete a intensa polarização ideológica que devastou a vida pública brasileira na época. Reflete também a posição de Lota, então lacerdista incondicional (Lacerda e sua amiga viriam a romper relações depois de 1965). Mas não apenas isso: Bishop tinha aversão à vulgaridade justiceira dos grandes projetos coletivistas, ao contraste entre seus belos propósitos e à mediocridade militante. Sintomático, conforme consta de uma das cartas, que ela lesse Alexander Soljenítsin já em 1963, mal o "dissidente" soviético fora traduzido para o inglês.

No âmbito privado, o contexto das passagens a seguir é a dissolução do amor entre as duas mulheres. Lota se deixa enredar no labirinto burocrático do governo, vê o sonho do Parque do Flamengo ser amputado, sofre de depressão e doença cardíaca. Bishop se afasta do Rio, compra uma casa em Ouro Preto. E se apaixona pela "companheira vivaz, gentil e divertida" mencionada em uma passagem abaixo. Em setembro de 1967, Lota viajou em desespero a Nova York, à procura de alguma reconciliação com Bishop. Depois de um encontro tumultuoso, Lota tentou se matar por ingestão de barbitúricos. Hos-pitalizada, morreu uma semana depois. O centenário de Lota acontece no ano que vem; o de Bishop, no seguinte.

Rio de Janeiro, 15 de junho de 1961

Querido Cal

Um bom exemplo do humor político brasileiro derivado do cinema. Não sei se um filme italiano medianamente bom chamado O Belo Antonio chegou a Nova York ou não. Trata do tema ousado da impotência. Bem, o novo e único porta-aviões brasileiro, de segunda mão, que custa milhões e milhões de dólares inexistentes e desliza lentamente para cima e para baixo pela baía com um ou dois helicópteros na vasta pista do convés, agora é chamado de Belo Antonio.

Lota está trabalhando duro e está se saindo tremendamente bem. Tem sido até atacada nos jornais, a intriga corre solta e duas pessoas pediram demissão. Devo ter contado a você que ela trabalha como "coordenadora- chefe do Aterro" - tendo o aterro, ao que parece, 6 quilômetros de comprimento. Não tinha me dado conta do tamanho até irmos ver ontem. Ela está recusando o pagamento - isso é muito ruim, mas uma boa precaução. Está sendo maravilhoso para ela e, se a coisa sair da maneira como ela quer, será um grande e esplêndido parque sombreado, dois ou três restaurantes, parques de recreação, cafés ao ar livre etc. - oferece a todas as classes do Rio um lugar para ir caminhar, desfrutar a paisagem e a brisa marinha, do que eles carecem tremendamente. Se você tiver alguma idéia sobre parques de recreação (como deve ter provavelmente) nos diga... Perguntei a Howard Moss[1] sobre isso e ele escreveu que tinha uma boa idéia: enormes estátuas de cimento dos patriarcas. (Ele também ficou extasiado com as suas traduções de Baudelaire na Partisan Review.)

O paisagista... (sei que você provavelmente não compartilha o meu interesse por decoração de interiores, arquitetura moderna, jardins etc., mas afinal de contas moro de fato num dos pretensamente melhores exemplos - de arquitetura, quero dizer - na América do Sul). Bem, você deve ter ouvido falar dele - dão aulas sobre ele em Harvard, é chamado o moderno Le Nôtre[2] e eu acho que é um dos verdadeiros gênios brasileiros - Roberto Burle Marx. Ele deu uma grande festa na sua fazenda (na verdade, seu viveiro de plantas - acres e acres de lindos, e de certo modo tristes, flamboyants, e de ameaçadoras plantas e árvores subtropicais) para o nosso amigo governador[3] e todo mundo que tem algo a ver com o "aterro". Burle Marx é também um bom cozinheiro. Havia porcos assados, peixes de 1 metro de comprimento e fantásticas decorações de frutas e flores com metros de altura, que todo mundo rasgou em tiras no fim do dia para levar para casa. Infelizmente alguém teve a idéia de trazer uma comissão comercial chinesa que tinha acabado de chegar de Cuba - oito ou dez chineses pequenos, de aspecto relaxado, joviais, de cabelos compridos, que não tocavam em álcool e faziam muitas perguntas sobre as pessoas, em francês ou em mau inglês. (Mao-Mao - que se pronuncia como Mow - quer dizer "mau-mau" em português e é uma expressão comum. Depois que todos eles recusaram o uísque e o vinho outra vez, com ar cada vez mais severo, Roberto disse "Mao-Mao Tse-tung".) Tentei conversar com um deles cujo inglês era muito limitado e quando me disse que "Castro-forte-forte", brandindo o punho, e "Batista-mau-mau" (como se eu não tivesse ouvido falar dele, provavelmente), pela primeira vez, eu creio, um verdadeiro calafrio de medo e horror do comunismo desceu pela minha espinha. Eram uns homenzinhos lúgubres, de ar ignorante, os olhos ardiam com uma paixão justiceira - e lá estávamos nós muito alegres, admirando as plantas e a coleção de antiguidades de Roberto etc., nos entupindo de comida e à beira de colher o que semeamos.

Elizabeth

Castine, Maine, 31 de agosto de 1961

Querida Elizabeth

Passei a semana inteira preocupado com você, no seu tumulto. Na tevê, vimos [Jânio] Quadros deixando o país sem uma gravata sequer, soldados brasileiros protegendo a embaixada americana no Rio etc. Espero que tudo esteja bem com você. Avise se eu puder fazer alguma coisa, como lhe mandar dinheiro.

Rio, 14 de setembro de 1961

Querido Cal

Ficamos todos muito comovidos com sua oferta de dinheiro... Recebi sua carta quando subimos para Samambaia no último fim de semana. Por acaso tínhamos ido ao banco e às casas de câmbio um dia antes de serem fechadas, portanto estamos bem - na verdade, podemos até mandar dinheiro para os nossos amigos que ficaram desguarnecidos. Agora os bancos estão abertos de novo. De todo modo, não imaginava que você estivesse vendo tevê em Castine.

Foi um período triste e terrível para todos aqui e agora não estamos gostando nem um pouco da forma como as coisas estão andando.[4] Lota, é claro, se envolveu muito em tudo isso e passou noites inteiras no palácio do governador, chegando em casa só para o café da manhã. Você sabe que o governador do estado da Guanabara é um velho amigo nosso, Carlos Lacerda, e foi ele quem deflagrou todo o movimento, mais ou menos. É extremamente complicado, claro. Até escrevi uma nota para o New York Times a respeito, uns dez dias atrás - talvez você tenha visto, talvez não publiquem.[5] Mas na verdade, os jornais americanos que vi - ou o que foi citado deles nos jornais daqui - entenderam tudo completamente errado. Meu único postulado era que os eua não acreditam em nenhuma palavra do que a Rússia diz; no entanto, quando se trata da América do Sul, a tudo o que qualquer um diga - ditadores ou aspirantes a ditadores, da direita ou da esquerda (como agora) -, os eua dão fé. A situação parece muito ruim. Porém - não vou entrar em detalhes! -, acho que quando for para n.y. darei palestras, depois de jantares, a respeito da situação no Brasil. Parece que sei muito a respeito do assunto. A esquadra passou para um lado e para o outro, soltando fumaça no mar, na frente do nosso apartamento aqui, e eu olhei pelo binóculo. Mas o Rio mesmo ficou muito tranquilo graças ao Carlos, que o New York Times chama de "feudal e reacionário" etc., etc. O Exército de fato é tão pouco belicoso que eles recuaram - e na verdade se portaram muito bem!

Elizabeth

Sábado, 16

Não acredite no que você vê sobre "legalidade" e salvar a preciosa "Constituição"! Todos os velhos vigaristas estão voando de volta para os seus cargos o mais depressa que podem & o pc age abertamente agora.

A grande Bienal vai começar daqui a pouco em São Paulo - temos de ir, eu acho.

Será que terei de fazer outra viagem ao pesadelo de Brasília? Deus me livre.

No momento, ando meio apaixonada pelo último imperador - dom Pedro II - seguramente o mais nobre imperador do mundo, no que diz respeito ao caráter. Tentou abraçar Whittier,[6] à maneira brasileira, quando se conheceram. Whittier recuou, é claro. Quando se separaram, dom Pedro desceu atrás dele pela escada (isso aconteceu na casa de Longfellow,[7] num jantar) e finalmente conseguiu abraçá-lo (dom Pedro tinha 1,95 metro de altura). Traduziu um poema muito ruim de Whittier, "O lamento de uma alma perdida" - não sobre a escravidão, como eu tinha pensado, mas sobre um pássaro do Amazonas - e mandou para ele uma caixa de vidro com esses pássaros, empalhados. Mas não vou continuar a revelar minhas surpresas eletrizantes...

Até logo, nos veremos em breve - Lota manda abraços.

Elizabeth

25 de setembro [1961]

Querido Cal

Aqui, tudo está uma confusão, e uma tragédia, na verdade. Deus sabe o que vai acontecer depois. Parece excessivamente pró-comunista para mim e, por favor, diga a Kennedy ou a Arthur S. Jr.[8] para se mexerem. A América do Sul inteira poderia muito bem azedar - para o lado do comunismo -, como uma leiteira, eu acho, e a culpa é metade do Brasil e metade nossa. (Um pensamento alegre para deixar com você.) Lota está de novo no "palácio" - ela adora uma briga felizmente, mas isso tudo já é demais. Todo mundo acusa todo mundo, e Lota está sendo atacada nos jornais também - em geral por ciúmes e despeito. Acho que é como nos eua, na verdade, mas numa escala tão pequena e tão pessoal - e eu nunca me envolvi nos eua!

Como seria bom encontrar você.

Elizabeth

Rio, 22 de janeiro de 1962

Querido Cal

Vi um anúncio de Os Sertões - Rebellion in the Backlands -, o melhor livro brasileiro depois de Machado de Assis & escrevi pedindo que lhe mandassem um exemplar. Você nunca vai ler o livro inteiro, mas pule a primeira metade e passe direto para a parte narrativa - é maravilhoso, de fato. Desconfio que influenciou Hemingway - numa tradução para o espanhol - e ele quase mostrou isso (sua descrição da retirada em Caporetto).[9]

14 de abril de 1962

Querida Elizabeth

Estou pessimamente preparado para falar a platéias brasileiras. Botsford parece supor que posso adquirir em poucos dias fluência na leitura em português, mas é claro que nunca vou conseguir. Gosto de verdade de alguns poemas de Bandeira, e também de Jorge de Lima, e já cheguei à metade de Epitaph of a Small Winner[10] de Machado de Assis - tremendamente bom. Posso adivinhar que os brasileiros vão me deixar com a sensação de ser um bárbaro, com a cultura francesa e latina deles, que nós jamais tivemos. É muito mais contundente descobrir que os brasileiros têm isso do que ver a mesma coisa na França, onde já é de se esperar que seja assim. Estou começando a acreditar nas tiradas arrogantes de Eliot sobre nós, a respeito da maturidade da mente latina. Vou levar uma porção de antologias etc., e acho que posso declamar e ler em voz alta, interminavelmente, a poesia em inglês deste século. Acho que eles já conhecem os grandes nomes - ou serão tão ignorantes como nós? Ninguém aqui, exceto o jovem entusiasta,[11] sequer conhece Neruda.

Querida, mal podemos esperar, lembranças a Lota.

Cal

Rio, 19 de dezembro de 1962

Querido Cal

Também ando fazendo algumas traduções. Acabei de ler um livrinho muito bom sobre Santos Dumont - você até podia gostar, eu acho - muito justo e cordial. Ele era um personagem delicado, feito um colibri, e é uma pena que os aviões não tenham sido desenvolvidos da maneira como ele (& Leonardo) sonhava - todos seus aviões e seus planos fazem os nossos jatos parecerem grosseiros e mortíferos. E esses pilotos musculosos e aeromoças sensuais teriam lhe inspirado pavor. (Um dia quero escrever um poema sobre tudo isso.)

10 de fevereiro de 1963

Querida Elizabeth

Espero ver a sua Lispector na The New Yorker. Quer que eu entre em contato com Jack Thompson e fale sobre sua outra amiga?[12] Sei perfeitamente bem quem ela é - o jovem brasileiro que esteve aqui disse que ela e Clarice são as melhores prosadoras no Brasil -, mas não tenho a sua carta à mão e não tenho certeza da grafia.

Rio, 5 de março de 1963

Querido Cal

Brasil e França estão prestes a entrar em guerra, parece, por causa das lagostas brasileiras - navios de guerra a postos, notícias de hora em hora, igual a uma comédia musical.

Aquela senhorita Kray me escreve dizendo que minhas traduções de Cabral de Melo são "excelentes" - que bom, mas eu queria saber como ela sabe disso. Posso escrever aquele poema longo inteiro só por diversão - se encaixa em inglês com muita facilidade.[13] Também traduzi alguns poemas de Drummond. Você se importa por eu ter traduzido "A mesa", aquele de que você gostou? É o melhor dos poemas de memórias da infância - e essa parte da poesia dele é a que mais me agrada. Claro que traduzi do meu jeito rigorosamente literal, de modo que se você, a qualquer momento, quiser produzir uma versão Lowell, cheia de vivacidade, eu não acho que a minha vá interferir com a sua nem um pouco - elas seriam muito diferentes. Além do mais, no poema, tem muita gíria do Rio que não está no dicionário - assim você podia "pesquisar" o sentido das palavras na minha versão (se eu fizer isso - só farei se me pagarem por mais outros trabalhos).

Obrigado por oferecer ajuda para Rachel de Queiroz. No momento, estou de folga quanto a tentar ajudar quem quer que seja! - talvez só para brasileiros! Eles são tão inconfiáveis... É adorável poder ser assim, e nós talvez sacrifiquemos muita coisa, com as nossas consciências e tudo o mais.

Mas tenho a sensação de que, se eu conseguir organizar tudo, ela pode muito bem dizer que não, que está sem vontade, ou que sem o marido não pode ir - e depois irá embora para as suas fazendas do Norte, assoladas pela seca, e ficará deitada numa rede enquanto vê o gado morrer de sede... Ah, querido, eu gosto dela, mas já tive problemas de personalidade de sobra por um tempo. Ela acabou de voltar para o Norte outra vez, para ficar seis meses, bem na hora em que eu achava que estávamos chegando a algum lugar; e agora tudo voltou à estaca zero outra vez. Também não ouvi mais falar dos contos de Clarice. Ela se ofereceu para mandar os contos pelo correio algumas semanas atrás - aposto que nunca fez isso! Infelizmente só fui descobrir o melhor conto quando já era tarde demais. Ela me entregava um conto de vez em quando - talvez eu termine isso também, só para fazer o trabalho direito - e depois acabou.[14] Ah, sem dúvida vou acabar cedendo, mas por um tempo quero pensar nos meus assuntos.

Elizabeth

Piada infantil brasileira: por que um Volkswagen parece uma bunda? Resposta: porque todo mundo tem um...

14 de março

Cal,

Isto está na minha escrivaninha há uma semana porque achei que era maçante e mal-humorado demais para mandar - acabei de reler e, embora não ache muito interessante, acho que dá para enviar... O Brasil venceu a guerra da lagosta. Meu canarinho teve um ataque do coração (acho). Faz uma semana que mal vejo Lota, mas sábado é o aniversário dela e teremos uma espécie de noite de gala em Samambaia nesse dia... Fui maldosa a respeito de Rachel de Q. Ela quer muito ir para os eua, eu sei, e se ela escrevesse artigos para cá, provavelmente, talvez tivesse dinheiro para pagar a viagem do marido também - os dois são muito dedicados. Ela devia ir, o lugar está ficando inundado de literatura antiamericana violenta, poemas (acabei de receber dois livros desse tipo) etc. - todos tão rasteiros. Os escritores e poetas soam como no início da década de 30 nos eua e é uma pena que pareçam querer passar por tudo aquilo outra vez - também passaram por isso aqui (a geração de Rachel). Acabei de ler Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch[15] - o livro que Philip Rahv resenhou. É comovente e estimulante, acho.

Elizabeth

Rio, manhã de terça-feira,

26 de maio de 1963

Querido Cal

Supõem-se que Carlos [Lacerda] concorrerá para presidente em 1965. Salve-nos. Muita coisa pode acontecer antes, mas se ele for eleito tenho certeza de que Lota seria ministra da Educação ou embaixadora, ou outra coisa. Acredito que ela é de fato a única amiga que ele tem, às vezes - a única que ousa dizer a ele a amarga verdade de vez em quando, e ele aceita. Levamos a ele uma carta às onze da noite de domingo, na qual ela o advertia quanto ao "macarthismo" - e ela já produziu efeitos.

Todos os comunistas, estudantes, janguistas, nacionalistas etc. se esgoelam sobre "reforma agrária" - como se qualquer um com juízo fosse contra a reforma agrária no Brasil. Mas o que eles realmente querem são mudanças aterrorizantes na Constituição que dariam a Goulart poderes ditatoriais. Aparentemente há muitas leis boas - sempre existem aqui - e tudo que eles têm que fazer é colocá-las em prática. Mas rotulando tudo de "reforma agrária", quando o que querem é escrever uma nova Constituição, eles mantêm o povo atordoado, como de hábito, e os estudantes esgoelando que Carlos é contra o camponês... Ó, Senhor, estou cheia disso.

Os rapazes brasileiros são muito diferentes dos americanos, sem dúvida - amantes dos 14 anos em diante, mais ou menos. Eles sabem tudo de l'amour, mas não têm a menor idéia de como fazer a cama. Ou limpar os sapatos, ou de como ganhar dinheiro - ou quanto custa viver - ou como é a vida real da sua empregada. De fato, eles nem vêem a classe pobre como gente, e ainda acham que são comunistas.

Com amor sempre.

Elizabeth



Rio, 28 de junho [1963] - alvorada

Querido Cal

Acho que o desejo vem primeiro e é isso o que conta, mas se você nunca um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom - ou se nunca na sua vida ouviu música boa, finge que "bossa nova" é bom, ou Villa-Lobos é o maior etc.

Muito amor.

Elizabeth

Rio, 2 de julho de 1963

Querido Cal

Darcy Ribeiro - que era o reitor da Universidade de Brasília quando você esteve aqui (& lhe deu seu livro sobre arte plumária) - subiu muito e bem rápido desde então. Chegou a ministro da Educação, a chefe de alguma coisa - gabinete - e no momento está travando uma queda de braço com Carlos. Os jornais vespertinos dizem que o governo vai destituir Carlos; os jornais da manhã dizem que Carlos entrou com uma ação na Justiça contra o governo! Que a maldição caia sobre as suas duas casas...[16]

Clarice foi convidada para outro congresso literário na Universidade do Texas e está se mostrando muito reticente e complicada, mas acho que em segredo está muito orgulhosa e vai acabar indo, é claro. Vou ajudá-la com o seu discurso. Penso que vamos ser "amigas", mas ela é a escritora mais não literária que já vi e "nunca abre um livro", como a gente costumava dizer. Nunca leu nada que eu pudesse descobrir - acho que é escritora autodidata, como uma pintora primitiva.

Rio, 11 de outubro de 1963

Vinicius [de Moraes]- lembra dele?- casou pela quinta vez. Fugiu com uma garota de 20 anos, filha do embaixador ou cônsul italiano - e ela estava noiva de outro. O jovem descartado desafiou V. para uma briga. Aí quando os dois "foram lá fora", ele olhou para o coitado e bêbado V., desistiu e foi embora. V. deixou uma carta para os pais, dizendo saber que era um comportamento ruim para um "diplomata", mas que como "poeta" ele não se conteve... Todos têm pena da garota...



Rio, 26 de novembro de 1963

Querido Cal

Não tenho muito o que dizer a você, na verdade - os últimos dias foram como um pesadelo, é claro -, mas senti vontade de lhe escrever um bilhete. Lota chegou cedo em casa na sexta-feira, de volta do trabalho, para me contar sobre Kennedy antes de eu ouvir a notícia no rádio. Se bem que há uma greve no rádio e na tevê já faz uma semana mais ou menos, e só a rádio do Ministério da Educação está no ar. Todos os jornais publicaram edições especiais naquela noite. Fomos à rua e a visão das multidões foi terrivelmente comovente - as ruas lotadas de gente, as bancas de jornal cheias e muitas pessoas chorando abertamente. A dor aqui foi autêntica, sem dúvida - certos ou errados, eles tinham a sensação de que Kennedy era um amigo do Brasil. Você sabe que os brasileiros são muito mais formais a respeito da morte do que nós. Devo ter recebido quinze ou vinte telefonemas e algumas visitas - de "condolências". Eles também se sentem tão mais próximos de seus políticos do que nós - na sua maneira de pensar, todos os americanos devem se sentir como se tivessem perdido um parente. E têm reações emocionais muito mais rápidas do que os anglo-saxões - ou do que eu tenho, pelo menos. Lota almoçou com Carlos hoje e ele disse que estava começando a se sentir normal outra vez; ao passo que hoje é o dia em que estou começando de fato a me sentir mal.

Uma estação de tevê finalmente voltou ao ar e assim nós vimos, provavelmente, alguns dos horríveis cinejornais que você viu - aqueles carros desmesurados adernando feito gelatina nas curvas, aqueles rostos gordos do Texas, solenes e burros, aquelas intermináveis imagens das costas de guardas cobertas de coldres e cartuchos de munição... Ah, Deus, que barafunda. Talvez uma parte esteja esclarecida quando você receber esta carta, mas receio que o assunto vai se arrastar.

Amigos nossos acabaram de voltar depois de passar três meses em Washington e na Filadélfia - americanos - e dizem que estão contentes por estar de volta, por mais horrível que seja a situação por aqui. Acham que a atmosfera por lá está muito Sodoma e Gomorra, creio - dinheiro, dinheiro, dinheiro e aterradores problemas com os negros. Bem, aqui estamos esperando um golpe (do presidente) a qualquer momento. Hoje e ontem o clima ficou mais quente, muito quente - e a gota de água, no que diz respeito a greves, é uma greve de coveiros... aqui não se costuma embalsamar e não há refrigeração que chegue!

Com muito amor, como sempre.

Elizabeth

10 de março de 196[4]

Querida Elizabeth

Saiu uma matéria no Times nesta manhã sobre o fato de Goulart ter encampado refinarias de petróleo e muitas terras - lúgubres ponderações dos eua sobre a agitação incessante. Espero que não haja nenhum problema novo.

Penso em vocês duas todo dia. Mande mais notícias, e um outro poema ou poemas. A família manda seu amor e eu, todo o meu.

Cal



3 de abril de 1964

Querida Elizabeth

Tudo parece calmo e em paz no Brasil no último dia e meio, mas ainda tremo ao tentar imaginar a agitação dos últimos dias e, sem dúvida, das últimas semanas ou meses.

As últimas notícias que li informam que os fuzileiros navais estavam atacando o palácio do governador cercado por barricadas e, enquanto isso, a polícia do governador tentava tomar o pequeno Forte de Copacabana. Enquanto eu voltava de avião para casa, havia um céu claro sobre o Atlântico quando chegamos lá e imaginei a mesma lua, milhares de milhas ao sul, brilhando sobre o mesmo oceano, tudo estranhamente mais próximo, porque a praia de areia, como uma estrada, levava até você, e em pensamento a gente podia andar sobre ela e se perder, quando então pensei em aglomerações em conflito, formadas por soldados magros e de capacete. Graças a Deus tudo acabou. Percebo que depois que deixei o Brasil tudo fermentou e que aquela única semana tinha pouco a revelar do que viria a ser a realidade na semana seguinte. Espero que a mudança tenha atenuado as sombras para você e Lota, e também para o país. Escreva e conte o que aconteceu com vocês e tudo aquilo que seus olhos iluminaram.



Rio de Janeiro, 4 de abril de 1964

Queridos Lowellzinhos,

Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva - tudo terminado em menos de 48 horas. De fato, sentimos um estranho esvaziamento, nos preparamos para viver coladas no rádio e na tevê, deitadas sobre muitos sacos de café; eu assei pão - não havia pão para vender etc. - e também assei um pernil de porco! Porque achamos que ia faltar gás. Agora estamos comendo o pernil todo... Revoluções modernas, aprendi, são engraçadas, tudo pára de funcionar - menos o telefone, porque é automático -, portanto todo mundo fica sentado no escuro, sem tomar banho etc., telefonando para os amigos o dia inteiro e a noite inteira.

Lota e outra mulher eram as únicas no Palácio Guanabara (de Carlos). Lota tinha um salvo-conduto de um dos generais, e entrava e saía passando pelas tropas do presidente, que cercaram o palácio. Todos os homens lá dentro mostravam as armas uns para os outros etc. Mas o palácio não resistiria a um ataque, havia apenas 100 soldados, com armas leves. No dia 1º de abril, Carlos lançou um pedido de socorro pelo rádio e pareceu de fato desesperado. Peguei a transmissão em ondas curtas, por intermédio do estado de Minas, pois o governo ocupou as estações de rádio aqui e, por dois dias, só captamos um monte de mentiras e o hino nacional. Esse foi o pior momento - eu sabia que Lota estava lá dentro, ela insistiu em voltar para lá, ou eu esperava que estivesse e que não fosse apanhada pelas tropas federais. Contudo uma hora mais tarde tudo havia terminado. Todo o exército veio e voltou-se contra Goulart - e ele já havia fugido, mas nós não sabíamos. Então uma enxurrada de pessoas saiu para as ruas - chuvas de papel picado, bandeiras, música etc. Saí de carro com um amigo para ver a cidade. Na calçada, um autêntico toque do Rio - homens grandes e peludos, de calção de banho, dançando feito loucos, sacudindo suas toalhas molhadas. A coisa toda transcorreu debaixo de violentas tempestades, portanto o papel ficou grudando - carros, tanques, tudo lambuzado de papel molhado.

As duas últimas semanas correram cada vez mais alucinantes. Goulart exagerando o seu papel obviamente, e pelo visto superestimando sua força como um tolo - ou sendo forçado a isso. O outro lado (nós somos os "rebeldes"!), subestimando a força deles. Segunda à noite vimos Goulart na tevê fazendo um discurso bombástico num comício-monstro de sargentos. Foi terrível, quase patético - os agitadores tentando ler discursos escritos para eles, sem conseguir ler direito etc. L & eu chegamos a dizer uma para a outra: "Bem, isso é o fim, não tem jeito."  E sem dúvida foi mesmo. O Exército não ia aceitar aquilo. Só um exército continuava supostamente leal ao presidente - e então em 1º de abril ele também mudou de lado & foi o fim. Mas o clima estava bastante tenso quando soubemos que o Rio se encontrava completamente sob controle federal, exceto por Carlos, que se mantinha resistindo naquele tolo palaciozinho, enquanto o único exército "inimigo" estava marchando para su-pos-tamente nos subjugar... Muito pouca gen-te morreu, pelo menos até onde a gente sabe. (Desconfio que isso ocorreu porque não havia veículos de transporte e poucos carros estavam na rua; provavelmente algumas dúzias das mortes de costume devidas a atropelamentos e acidentes de carro foram evitadas...) O Forte de Copacabana desempenhou um papel importante, mas só um soldado foi morto. Agora faz dois dias que estão prendendo pessoas - oh, Deus -  e a maioria dos figurões fugiu.



Rio de Janeiro, 7 de abril de 1964

Mais de 3 mil pessoas presas só no Rio. Carlos deu várias e várias ordens, nenhuma brutalidade policial será permitida etc., mas incidentes acontecem com qualquer polícia.

A coisa mais estimulante, na verdade, foi a passeata do dia 2. Foi planejada por duas semanas como uma manifestação anticomunista. Nessa ocasião, no dia 2, a revolução já estava terminada e os comunistas em fuga; portanto, não era mais necessária. Porém mais de 1 milhão de pes-soas saíram às ruas e marcharam - de novo debaixo de uma chuvarada. Foi de fato impressionante. Estou mandando para você algumas revistas com fotos - vamos ver se você recebe. De fato a manifestação foi espontânea e não é possível que sejam todos da direita rica e reacionária... O dia 1° de abril é aqui o dia da mentira, portanto agora andam dizendo: "A verdade apareceu no dia da mentira." Não acredito em tudo o que os jornais dizem, é claro, mas Lota está em condições de saber bastante coisa. Desco-briram até agora mais de 15 toneladas de material de propaganda chinesa e russa - além de armas, explosivos etc. A quantidade é que é impressionante.

Ando horrivelmente deprimida com o que está acontecendo por aqui e meu único pensamento é ir embora por um tempo. A Inglaterra é o melhor lugar, creio - posso falar a língua, mais ou menos, e acho que eles não dão a mínima para o Brasil, assim ninguém vai me fazer perguntas.

Elizabeth



Rio, domingo, 13 de abril de 1964

Querido Cal

A junta militar provavelmente parece muito pior vista de fora do que vista daqui. Como você sabe, os militares no Brasil jamais na sua história tentaram tomar o poder ou mantê-lo - e Castelo Branco relutou em ser presidente. Agora temos um vice-presidente terrível[17] - sagaz, mas desonesto -, porém não acredito que ele vai ter muito poder. A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera "deposição", e não uma "revolução" - muitos homens de Goulart continuariam lá no Congresso, todos os comunistas ricos iriam fugir (como alguns fugiram, é claro) e os pobres e ignorantes seriam entregues à sua sorte.

Muito amor.

Elizabeth

14 de abril

Estou furiosa com o que os jornais dos eua andam dizendo, pelo que vejo citado, e com os comentários do adido cultural que veio jantar conosco na noite passada...

Ele estava admitindo que os eua eram pró-Carlos embora, claro, não possa dizer isso abertamente, e que as coisas saíram da maneira como eles queriam. Enquanto isso, argumenta que é errado retirar os direitos civis etc. Bem - idealmente falando, é claro -, o que é que se pode conseguir num país pobre, fraco, praticamente sem polícia nenhuma? Os eua podem enfrentar espiões, sindicalistas, corridas armamentistas; o Brasil obviamente não pode. Se tivessem dado esse passo trinta anos atrás, na primeira vez que Vargas ficou fora do poder - cassando seus direitos civis -, ele nunca teria sido capaz de voltar como ditador, e todos os anos de degradação e abatimento poderiam ter sido evitados... R. Aron[18] foi a única pessoa que conseguiu entender as coisas por aqui - e sou grata a Carlos por ter citado Aron. Pergunte para Hannah Arendt! Aposto - se ela souber alguma coisa sobre o Brasil - que ela estaria de acordo com Carlos agora. Claro que é o que ele faz - o que ele é capaz de fazer - e eu gostaria de poder ficar longe por dois anos e não ter de passar pela próxima fase.

É gozado, os americanos esbravejam sobre "democracia" há anos - um grande princípio geral -, depois esbravejam de novo quando espiões chineses são presos ou uma dúzia de conhecidos desonestos e cretinos são mandados para o exílio... É um estranho senso de proporção acerca dos países, para dizer o mínimo.

Claro que um problema é que os eua nunca mandaram pessoal de primeira linha para cá. Gordon[19] comportou-se bem, acho. Ele fez uma piada: "Agora os EUA têm a sua Casa Branca e o Brasil tem o seu Castelo Branco..." Não é a perfeita piada de sala de aula de que os estudantes riem educadamente? Coi-tado do professorzinho.



1º de maio de 1964

Querida Elizabeth

Não acho que a revolução aí não deu certo. A última Time traz um levantamento da apropriação indevida de terras feita por Goulart - um por cento das terras do Brasil! Ele parece mais desonesto do que Kubitschek. Parece loucamente ineficiente, desonesto e corrupto. Só o seu ministério, acho, era de figuras ilustres, mas é possível escrever uma tragédia ótima sobre como o presidente preparou a própria queda. O problema com as matérias da imprensa é que há excessivas palavras políticas fixas. Atualmente, elas não significam a mesma coisa em dois países, quaisquer que sejam, e até de um mês para o outro os fatos mudam. Acho que todo mundo tem a sensação de que o Brasil estava caindo rapidamente no caos, até mais rapidamente do que os brasileiros sabiam ou previam, até o último momento.

Você fala sobre o temperamento artístico, que não combina com esses assuntos. Mas você capta as coisas de forma bem perspicaz e retorna à superfície com as mãos cheias. Sou um pateta nessa matéria. Gostaria que você pudesse achar formas, narrativa, descrição, ficção, poemas para expor isso. Talvez seja preciso tempo e distância. Olho nenhum no mundo viu o que seus olhos viram. Tenho uma vaga imagem de uma sequência de poemas ao longo dos quais a Revolução se movimenta - nenhum enredo ou polêmica óbvios, mas a coisa corporificada, presente em todo o seu aspecto terrível, absurdo - bom, mau, real, confuso, esclarecido e, no fim, julgado. Não me refiro a nada neutro ou para além da política, é bem o contrário, tudo resgatado dos clichês levianos, duros, superficiais de que os que se afastam abrem mão da realidade, de que nós todos abrimos mão até daquilo que conhecemos bem. Estou pensando de fato que a Revolução podia fornecer a você um fio para costurar as impressões coletadas ao longo da sua estada de dez anos.



Samambaia, 22 de maio de 1964

Querido Cal

Carlos vai partir nesta noite para ficar uns meses fora - esse estranho sistema brasileiro é uma boa idéia no caso dele. Se ficasse, sem dúvida iria começar a lutar contra o Castelo Branco, mais dia, menos dia, pois é da natureza dele lutar, e agora que perdeu a sua grande causa, pelo que mais pode lutar? Quero dizer, ele venceu este round contra os "comunistas", então o que vai fazer agora? Há pessoas muito boas e honestas no novo gabinete - o New York Times etc. estão absolutamente errados -, mas estou tão farta de tudo isso que não suporto mais pensar no assunto.

Elizabeth



27 de agosto de 1964

Querido Cal

Todos estão morrendo. Um de nossos melhores amigos, o arquiteto Affonso Reidy (não sei se você o conheceu - magro, alto, impecável, mais escocês do que brasileiro, e um dos melhores arquitetos) acabou de morrer aos 54 anos, depois de seis meses terríveis. Lota ficou muito abalada (por essa razão parti de Londres duas semanas mais cedo - para chegar aqui antes da morte dele). Reidy e sua esposa tinham uma -ca-sa de fim de semana perto da nossa e agora acho que não sobrou ninguém para a gente conversar ou receber em casa para jantar no domingo - está um deserto. Reidy -também era uma das poucas pessoas sãs com quem Lota tinha trabalhado. Ela jura que todos os homens brasileiros são ligeira-mente doidos - as mulheres podem ser sãs, mas infelizmente são retardadas mentais...

O Brasil?, você me perguntou. Eu prefiro não pensar nisso. Quando voltei, tive a sensação de que não conseguiria suportar, e não conseguiria mesmo se não fosse por Lota, claro. Agora já estou me acostumando um pouco outra vez. Mas tenho de ficar me lembrando de que Lota, de algum modo, assume isso a sério, de que ela está fazendo um trabalho útil e muito bem-feito, e de que no ano que vem nós vamos para a Europa outra vez (agora isso parece estar mesmo certo). Há uma tênue depressão, a inflação anda horrível, embora não tenha mudado grande coisa enquanto estive fora, e se sente uma agitação em toda parte e o tempo todo.

Elizabeth



Rio, 6 de julho de 1965

Querido Cal

Não houve muito estardalhaço sobre a ida de soldados brasileiros para a República Dominicana - acharam que ia haver, mas não houve. Fico acordada e rezo de noite para que ninguém seja morto! (Três feridos voltaram até agora. O primeiro caiu de uma árvore. Como diz L., na certa estava roubando frutas, no tradicional estilo brasileiro. Um outro explodiu sua própria granada de mão, nada sério, e um de fato foi ferido pelo "inimigo", de novo sem gravidade.) Os jornais dizem que o Exército americano os enviou para "comandar o trânsito - com calma e tranquilidade"! Isso parece o procedimento rotineiro do Exército - mandar um ferreiro costurar ou soldados que falam francês para o Japão...

Elizabeth



Rio, 2 de agosto de 1965

Querido Cal

Li de fio a pavio uma enorme antologia - Uma Controvérsia de Poetas - e os seus três poemas familiares na antologia são os únicos que me fariam, bem, atravessar a rua para cumprimentar o poeta. Talvez haja um ou dois bons além deles, mas nada de comparável, na verdade. Achei o livro inteiro tremendamente deprimente; fez me sentir muito démodé, como diz Lota. Eu tenho de escrever prosa usando palavrões, f..., m... e assim por diante, vejo isso... - e não é estranho que de todos os problemas e de todo o nervosismo possa sair algo razoavelmente "sereno"? Bem, agora eu nem me importo se for mal recebido - o que você disser já é o bastante!

Também acabei de ler o último livro de Sylvia Plath e o de Auden - e queria saber o que você acha deles. Sylvia P. me parece uma perda trágica - embora eu mal consiga suportar ler seus poemas até o fim, são muito sofridos. Um pouco informes demais para o meu gosto, também - mas um verdadeiro talento, não acha? E Auden parece estar desfrutando em excesso uma espécie de velhice prematura... Há alguns bons, porém.

Bahia - bem, acho que você deu uma passada por lá, ou ficou lá por uns dias bem insatisfatórios que eu me lembre, quando ninguém conseguia encontrar ninguém. Passei uma temporada ótima de fato, mas é tão pobre - mesmo comparado com o pior do Rio - que acaba sendo muito deprimente. Ruínas magníficas, na maior parte - e ouvi muita música meio africana, e comi um monte de comida meio africana. As prostitutas (sempre em volta das igrejas, na rua atrás da igreja) quase arrastaram Ashley, que estava do meu lado, e assoviavam e chamavam por ele das janelas das sacadas. Como ele é o homem de aspecto mais professoral do mundo - alto, magro, de óculos muito grossos e costas curvadas -, acho que ficou um pouco assustado. Todos os "intelectuais" são assim, muito de esquerda - quando não são comunistas, como Jorge Amado - e muito friamente polidos conosco, americanos. Ficamos oito dias.

Lota anda estafada de tanto trabalho. Levamos o maior susto por causa do coração dela. Sem contar nada para Lota, chamei o médico e o cardiologista para virem no domingo de manhã e tudo está bem, graças a Deus. Em consequência dormimos direto por umas quatro horas - de alívio, suponho. Lota anda tremendamente importante ultimamente e, é claro, correm rumores (sempre correram, na verdade) de que ela está ganhando uma "fortuna" com o seu parque e guardando o dinheiro no exterior - uns dizem que nos eua, outros na Suíça... Carlos está cometendo um erro depois do outro, me parece - perdeu a mão, ou algo assim. Duvido muito que venha a ser eleito agora. (E tenho medo que seja eleito.)

Elizabeth



Ouro Preto, Minas Gerais,

19 de setembro de 1965

Querido Cal

O Rio começou a ser demais para mim outra vez e por isso subi para cá - com a intenção de ficar só duas semanas. Agora já faz um mês e é provável que fique mais duas semanas. Depois é possível que Lota tire uns dias de folga, suba para cá e então volto com ela. Tem sido uma fase absolutamente mortal para ela e me sinto culpada por abandoná-la, mas eu não estava ajudando grande coisa, de fato - vagando pelo apartamento no meio do maior calor, tentando trabalhar, sem nenhum sucesso, enquanto ela enfrenta políticos, salafrários, jornalistas, dezoito horas por dia... Agora escrevo para ela quase todo dia e tenho certeza de que ela aprecia minhas cartas mais do que minha companhia por ora, coitada! Aqui é muito parado, mas adoro. Fico com a nossa amiga Lili Correia de Araújo, a dona do hotel onde você ficou, mas moro na casa dela - um enorme prédio construído numa encosta na periferia da cidade, com uma mina de ouro no quintal, além de alojamentos de escravos em ruínas, jardins morro acima em degraus nivelados e água corrente que desce por um maravilhoso conjunto de aquedutos, túneis, fontes, tanques de pedra etc. agora cobertos por samambaias muito crescidas e musgos. Lili tem uma aterradora coleção de algemas e argolas de prender os pés encontradas em escavações no terreno. Ela é dinamarquesa, casada com um pintor brasileiro muito tempo atrás, quando estudava arte em Paris. Nossos idiomas ficam muito misturados. Eu a chamei de tow-headed [mulher de cabelo muito claro] e ela pensou que eu tinha dito two-headed [de duas cabeças]. Ela diz your ass [sua bunda] em vez de dizer your ace [seu ás] quando estamos jogando cartas.



Rio, 18 de novembro de 1965

Querido Cal

Houve uma pequena manifestação de intelectuais na frente do hotel Copacabana Palace, e dois ou três homens foram presos.[20] Porém, não tenho muita simpatia por eles tampouco. não há uma "ditadura" aqui - acho que todos eles só querem virar mártires, na verdade. Por outro lado, parece que a nossa diplomacia latino-americana se perdeu de todo e transferiram tudo para as mãos do Pentágono - tenho a sensação que, de fato, é apenas uma manobra militar.

Gosto de Ouro Preto porque tudo aqui foi feito na hora, à mão, de pedra, ferro, cobre e madeira - e tiveram de inventar muita coisa -, e tudo resistiu muito bem durante quase 300 anos. Eu achava que era só sentimentalismo da minha parte - agora estou começando a levar isso mais a sério. Bem, estou curiosa para ver minha terra natal outra vez. Conte o que anda fazendo - em Harvard de novo? E eu estou morrendo de von-tade de ver você & conversar com você.

Amor.

Elizabeth



15 West 67 Street, Nova York,

15 de setembro de 1966

Querida Elizabeth

Em meados do verão, seguindo meu desejo e ignorando meu bom senso, fui a uma festa de aniversário para Jackie Kennedy: um edifício branco em forma de torre, quartos alugados para os convidados pela nossa anfitriã, a senhora Paul Mellon, sob os olhares de relance vespertinos do que deviam ser outros convi-dados, mulheres com penteados de 30 centímetros de altura, sorrisos, mas nada de apresentações, informação de que o nosso barco ia chegar às oito, que podíamos tomar um drinque ou alguns drinques grátis, nadar sozinhos - na água quase congelada do Maine -, um passeio de carro solitário e maçante, e o regresso para os convidados reunidos e bebendo. Pessoas com nomes como os dos figurões do noticiário, das finanças, da política, mas muitas vezes sem nenhum parentesco, ou primos distantes. Barco com champanhe em copos de papel, uma lancha acompanhando nosso barco, lindo pôr do sol, creditado ao planejamento da senhora Mellon. Depois atracar no cais, enxames de novos conhecidos-desconhecidos com lampiões, grande barraca, ar de simplicidade rústica muito cara. Horas de espera, com a sensação de que ninguém do nosso mundo era conhecido de nenhum dos outros convidados, exceto Mike Nichols. Ar de drama e espera por Jackie, o avião fretado para Lillian Hellman e os Styron. Após um tempo, de súbito, Jackie se faz presente e conversa com Mike Nichols; o grupo de Hellman está lá, os dois senadores Kennedy, McNamara. Mais tarde, um jantar suntuosamente simples: só consigo me lembrar das costelas de carneiro cor de sangue. Mike Nichols ao lado de Jackie, depois pessoas de meia-idade dançando as danças novas, não muito frenéticas, mas jovens demais para mim. A sensação foi de uma festança para uma extemporânea Maria Antonieta ligeiramente cafona, quando a idade para ficar empolgado com esse tipo de coisa já passou, o esplendor da alta sociedade, um pouco sinistro e de mau gosto num mundo de pobreza e sangue. A pessoa mais interessante para conversar era Bobby Kennedy, mas, como Carlos, junto com a franqueza, ele dá uma sensação assustadora de ambição e poder.

Cal



3 de março de 1967

Querido Cal

Fiquei comovida com a "leitura" do meu poema... meu único poema em um ano ou mais. Bem, é simpático da sua parte gostar dele, certamente não poderia ser muito mais simples do que é. Fiquei debruçada naquela janela dia após dia (foi escrito um ano atrás, em outubro - dane-se a New Yorker! Mas é o único jeito de ganhar algum dinheiro) porque a casa velha aonde fui e que comprei fica em frente à casa de Lili, numa diagonal, no outro lado da rua - e também na frente de uma cascata, que passa embaixo das janelas. Tenho uma vista magnífica que inclui seis ou oito igrejas. Estou instalando uma varanda pequena, mas autêntica, nos fundos, para tomar o café da manhã ou tomar um café depois do jantar. A casa é de 1720-40, refeita muitas vezes, claro, mas L. e eu sempre quisemos ter uma casa velha para brincar, e ela está planejando um jardim celestial e murado, com uma fonte etc. É provável que só passemos lá um mês ou dois de cada vez - mas eu espero que você veja a casa num dia desses.

Mas tivemos de abreviar nossa estada em duas ou três semanas. Lota estava piorando e eu estava louca para levá-la para casa de novo - e ela também queria vir, diferente da sua personalidade viajante de costume. Ela detestou Londres - não sei se algum dia serei capaz de levá-la a Londres outra vez. É pena porque acho que foi a sua saúde que a deixou tão crítica - chegou a me convencer que Trafalgar Square é feia e completamente errada... & assim com tudo o mais! Faz muito tempo que esse ataque vinha se preparando em Lota, os médicos me garantiram - ela estava com um aspecto horrível quando voltei em julho. Mas não consigo deixar de me culpar por ter me afastado, embora eu achasse que precisava deixar a atmosfera daqui por um tempo - & isso faz-me sentir culpada. Ela ficou numa clínica aqui por dois períodos - depois, por fim, eu também desabei e fui para a mesma clínica (dirigida por freiras de Barcelona), mas ela estava dez vezes mais doente do que eu e só está melhorando muito gradualmente. Agora no dia 8 vamos para Samambaia passar uma longa temporada, por isso se você escrever por favor use o endereço de Petrópolis. Ela está muito melhor, mas passamos de fato um mau pedaço & torço muito para que ela abandone aquele emprego de todo - ah, bem, tudo isso é muito complicado para ir mais a fundo e tenho certeza de que seria a mesma coisa que trabalhar para um governo ou uma prefeitura em qualquer outro lugar do mundo...

Uma das questões mais sérias é que Carlos traiu todos de uma forma horrível - depois de todos os seus anos de luta contra a gangue de Vargas e a corrupção, de repente, por razões políticas, passou para o lado deles (e dos comunistas) de novo. Faz anos que não consigo suportá-lo; ao menos continua a escrever cartas de amor para L.; na verdade, tenta fazer as pazes com ela de novo - mas como Carlos deixou, de fato, o "parque" de Lota indefeso, e agora ele pode muito bem ser dividido em duas partes, ela ainda se sente muito amargurada e não creio que algum dia vá mudar. De todo modo, para o inferno com os políticos.

Lembranças para a família - muito amor - e obrigado pelo seu livro.

Elizabeth



Caixa Postal 279, Petrópolis, Est. do Rio de J. (melhor agora), 23 de abril de 1967

Querido Cal

Carlos começou (com seus ex-inimigos, a maioria dos quais está oficialmente no exílio ou pelo menos não pode ocupar cargos públicos por dez anos) uma coisa chamada "Frente Ampla"! Faz mais de dois anos que não o vejo. Parece que ficou ofendido com uma pequena matéria que escrevi para o New York Times, que foi abominavelmente cortada e desfigurada, mas me atrevi a dizer que o Rio estava em muito mau estado e não incluí um elogio a ele...

Esse novo presidente,[21] por mais sinistra que fosse a sua "imagem" quando estive nos eua, na verdade é provavelmente um pouco mais liberal do que o último, mas não parece muito promissor. Lota teve diversas entrevistas com o novo governador[22] (que derrotou Carlos duramente) e ele é desolador - disse para Lota que essa parte da cidade estava boa (está caindo aos pedaços) e não fazia nenhum sentido tentar fazer nada sobre a "Zona Norte" onde vivem milhões de pobres. Imagine dizer uma coisa dessas. Sem falar nos deslizamentos de terra, com centenas de mortos.[23] "Não é culpa minha se a terra resolve se mexer quando sou governador", e assim por diante - inacreditável. Um velho homem de Vargas.

Lembranças à esposa e à filha, se estiverem com você outra vez.

 Elizabeth



Nova York, n.y., 10 de julho de 1967

Querido Cal

Lota tem um ótimo psiquiatra - shrink, como dizem meus alunos e você também! Não fui exatamente tratada, mas fui vê-lo uma vez por semana mais ou menos - e graças a Deus Lota tem esse psiquiatra e a nossa criada dedicada - eu não permitiria que fosse de outro modo. (Ele lê você - o shrink -, Deus também lê, sem dúvida.)

Elizabeth



1599 Pacific avenue, São Francisco, Califórnia, 9 de janeiro de 1968

Querido Cal

Vou passar a borracha em toda a minha estada no Brasil; foi de fato terrível demais para se comentar - não só a arrumação das malas, por mais horrível que tenha sido, mas o comportamento das pessoas que pensei que eram minhas amigas por quase dezesseis anos. Creio que tudo pode ser explicado, mas tive antes a sensação de que eu estava sendo usada como uma espécie de bode expiatório - sem exagero - e agora acho que a morte de Lota deixou todo mundo com uma sensação de culpa, e então eu apareci e fui inconscientemente usada desse modo. Seja como for, vou levar anos para esquecer e estou planejando como poderei voltar a Ouro Preto sem passar perto do Rio. Houve algumas exceções, claro, graças a Deus. Mas se alguém por lá quiser me ver outra vez vai ter de ir a Ouro Preto me visitar.

A casa lá é absolutamente adorável - espero que você possa vê-la um dia. Deve ficar totalmente pronta em julho e, se eu conseguir economizar o dinheiro necessário, vou tentar voltar lá no verão, eu acho. Passei dez dias lá - um alívio enorme na maior parte do tempo. Vinicius de Moraes também estava hospedado no hotelzinho, "repousando", e foi uma ótima companhia - é de fato muito gentil e simpático. Levou-me até o avião quando fui embora do Rio (eu estava indo sozinha, num táxi, do meu hotel) - e chegou até a pagar uma parte do meu excesso de bagagem, de outro modo eu nunca teria embarcado. Nesta altura, ele deve estar visitando Nova York, acho. Seja como for, tem tanta admiração por você que assumi a responsabilidade de lhe dar o endereço do seu apartamento (não do outro) e o obriguei a jurar segredo quanto a isso. Talvez ele vá procurá-lo e vocês possam ir almoçar juntos ou algo assim... Ele foi um ótimo amigo para mim nesse período.

Graças a Deus, Cal, agora estou com uma companheira vivaz, gentil, divertida - não creio que eu fosse capaz de morar sozinha por enquanto, ou morar em Nova York, e seguramente não no Brasil. Suzanne é de fato uma boa garota e datilografa todas as minhas cartas de trabalho; vai datilografar para mim etc. "Secretária" soa decadente para mim, mas talvez eu estivesse mesmo precisando de uma secretária, e por muito tempo!

Com muito amor sempre.

Elizabeth



[Ouro Preto, Brasil],

9 ou 10 de dezembro de 1969

Querido Cal

Agora acho que Ouro Preto é um lugar maravilhoso para visitar, mas eu não queria morar aqui... pelo menos acho que não. Neste momento, faz uma noite maravilhosa depois de um mês de chuva; as pedras estão lindas, esta É a casa mais bonita do mundo e o guarda-louças foi pintado. No entanto eu gostaria de levar a casa, ou a casa de Lota, pelo ar - como aquela igreja na Itália -, milagrosamente para Connecticut ou algum estado assim.

Vinicius de Moraes esteve aqui rapidamente na semana passada - imediatamente seguido pela sua quinta esposa,[24] para ficar de olho nele, grávida de seis meses, e com mais três filhos de um casamento anterior... Perguntou tudo sobre você e de algum jeito viu alguns de seus sonetos, que admirou imensamente. Coitado, parece doente, terrível, e não consegue parar de casar & beber. Tem planos para ir a n.y. em maio, mas duvido que faça isso.



Belo Horizonte, 3 de maio de 1971

Querido Cal

Me dou conta de que o meu mundo brasileiro chegou de fato a um fim e tenho de sair dele depressa. Levei muito tempo para reagir, como sempre. Céus, mas espero que você esteja bem e que tudo esteja bem com você.

Elizabeth J

 




[1] Howard Moss (1922-87), poeta e editor americano.



[2] André Le Nôtre (1613-1700), paisagista francês, jardineiro de Luís xiv, criador do parque de Versalhes.



[3] Carlos Lacerda (1914-77).



[4] No início de setembro, os militares e os "legalistas" que queriam honrar a Constituição selaram um compromisso precário, mudando temporariamente o regime para o parlamentarismo, governado por um primeiro-ministro. Isso permitiu que Goulart assumisse a Presidência no dia 7 de setembro como uma autoridade simbólica, na dependência de um plebiscito nacional.



[5] Não foi publicada.



[6] John Greenleaf Whittier (1807-92), poeta abolicionista e americano.



[7] Henry Wadsworth Longfellow (1807-82), poeta americano.



[8] Arthur M. Schlesinger Jr. (1917-2007), historiador americano, na época conselheiro do presidente John F. Kennedy.



[9] Ver Adeus às Armas, Ernest Hemingway (1929).



[10] Memórias Póstumas de Brás Cubas.



[11] Refere-se aos versos 136-137 do poema "A vaidade dos desejos humanos" (1749), de Samuel Johnson, a respeito de um intelectual idealista.



[12] Rachel de Queiroz (1910-2003).



[13] Elizabeth Bishop traduziu uma parte de Morte e Vida Severina.



[14] As traduções de Elizabeth Bishop dos contos "The smallest woman in the world", "A hen" e "Marmosets" (respectivamente "A menor mulher do mundo", "Uma galinha" e "Macacos"), de Clarice Lispector, foram publicadas na The Kenyon Review, em 1964.



[15] Romance de Alexander Soljenítsin (1918-2008) publicado clandestinamente na União Soviética e traduzido para o inglês em 1963.



[16] Alusão a Romeu e Julieta, de Shakespeare. Imprecação feita por Mercúcio, ao morrer, contra os Montecchio e os Capuleto.



[17] José Maria Alkmin (1901-74).



[18] Raymond Aron (1905-83), intelectual francês.



[19] Lincoln Gordon, o embaixador americano no Brasil.



[20] A manifestação foi na frente do Hotel Glória e dela participaram oito intelectuais, entre eles Antônio Callado, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade.



[21] Arthur da Costa e Silva (1902-69).



[22] Francisco Negrão de Lima (1901-81).



[23] Trata-se das enchentes de fevereiro e março de 1967.



[24] Na verdade, sua sexta esposa, Cristina Gurjão.

"O Brasil é mesmo um horror" - a poeta americana Elizabeth Bishop descreve a literatura, a política e costumes nos anos dourados.





Em cartas inéditas ao colega Robert Lowell, a poeta americana Elizabeth Bishop descreve a literatura, a política e costumes nos anos dourados. "O Rio está mais louco do que nunca", ela escreveu. "Falta água e o gás anda escasso; em cada edifício só um elevador funciona e há filas intermináveis, quarteirões inteiros para pegar os ônibus miúdos. Enquanto isso o Brasil está construindo uma capital novinha em folha, longe, no interior, onde sequer existia uma estrada um ano atrás"
por Elizabeth Bishop e Robert Lowell - Introdrução de Otavio Frias Filho
Ah, turista,
então é isso que este país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada
[menos
que um mundo diferente, uma vida
[melhor?
"Chegada em Santos", 1952, tradução de Paulo Henriques Britto

Em novembro de 1951, a poeta americana Elizabeth Bishop embarcou em Nova York num navio mercante para o que seria uma longa viagem em redor da América do Sul. Aos 40 anos, acolhida nos meios especializados como revelação promissora, ela havia publicado apenas um livro. Vivia da fortuna deixada pelo pai e enfrentava crises sucessivas de alcoolismo. Desembarcou em Santos, mas seguiu de trem para o Rio de Janeiro, onde pretendia visitar amigos americanos radicados na capital do Brasil. Ficaria duas semanas para então retomar viagem num próximo cargueiro.

No Rio, provando da hospitalidade dos nativos, ela mordeu um caju, fruta que lhe pareceu "indecente", e foi acometida por violenta alergia, que deformou suas feições a ponto de impedi-la de enxergar por dias. Escreveria depois que se afeiçoou aos brasileiros por causa das atenções, receitas e mandingas que prodigalizaram a uma desconhecida - uma mulher retraída, asmática, criada por familiares (a mãe permaneceu em internação psiquiátrica a partir da morte prematura do pai) na atmosfera exigente das melhores escolas da Nova Escócia, no Canadá, e de Massachusetts, nos Estados Unidos. Aqui nos trópicos, num país "sem classe média", como ela repete em suas cartas, numa sociedade em miniatura na qual todos pareciam aparentados entre si, ela foi bem recebida em um círculo ainda mais res-trito, o do grupo vanguardista, elegante e lésbico reunido em torno de Maria -Carlota Costallat de Macedo Soares, conhecida como Lota.

O pai de Lota, José Eduardo de Macedo Soares, oposicionista na República Velha, depois adversário histórico de Getúlio Vargas, era dono do periódico mais influente em meados do século passado, o Diário Carioca. Lota havia nascido em 1910, em Paris, onde o pai se achava exilado. Era uma mulher cultivada, que estudou no ateliê do pintor Candido Portinari, amiga de escritores e artistas. Sem ter frequentado universidade, foi reconhecida como arquiteta autodidata e paisagista emérita. Tinha ao mesmo tempo uma personalidade prática, impaciente. Deixou sua marca na paisagem e na história do Rio - apreciada até hoje por quem desembarca em um de seus aeroportos - quando Carlos Lacerda, seu amigo e primeiro governador (1960-4) da Guanabara, deu-lhe a missão de criar o Parque do Flamengo.

Bishop e Lota viveram juntas durante dezesseis anos, a maior parte desse tempo na casa modernista, envidraçada e coberta de alumínio, que Lota e o arquiteto Sérgio Bernardes fizeram na mata de uma escarpa de um sítio em Samambaia, na região de Petrópolis. Ali, cercada de carinho, segurança e isolamento, a poeta americana viveu dias felizes, apesar do alcoolismo renitente. Ali pôde cultivar o ócio - requisito que ela destaca como imprescindível, numa das cartas, à consecução da atividade artística, ainda que num sentido reverso: dedicação absoluta, no caso do poeta, à feitura do poema. Grande parte de sua obra foi composta no Brasil, sendo inúmeras as alusões a temas brasileiros.

A construção do parque no Aterro do Flamengo, se não afastou as duas mulheres, serviu de pretexto ao afastamento. Lota ficava no Rio, onde se entregava de maneira obstinada ao trabalho, redobrado no interminável confronto de sua personalidade impetuosa e perfeccionista com a politicagem administrativa. Bishop passou a viajar a Ouro Preto, em Minas, onde havia comprado e tratava de restaurar uma edificação do início do século xviii - a "Casa Mariana", homenagem a sua mentora, a poeta Marianne Moore (1887-1972). Em 1966, premida pelo esgotamento da herança familiar, sem que os prêmios literários que passara a receber servissem de compensação suficiente, Bishop aceitou dar seu primeiro curso acadêmico, na Universidade de Washington, em Seattle. Detestou lecionar (tinha aversão a falar em público, mesmo os próprios poemas), mas se apaixonou por uma jovem aluna americana que seria sua amante por alguns anos. O caso tinha todo um aspecto escandaloso: a estudante estava grávida quando se conheceram, chegou a morar em Ouro Preto com Bishop e a criança, e voltou a viver em Seattle depois de uma tumultuosa ruptura.

A saúde de Lota deteriorou, conforme ela se debatia nas escaramuças burocráticas, prestes a romper com o próprio Lacerda, cuja estrela política, depois do golpe de 1964, declinava depressa. Lota recebeu diagnósticos de arteriosclerose e depressão. Numa atitude drástica, contrária ao conselho médico, viajou para Nova York a fim de conversar com Bishop, que foi buscá-la no aeroporto. Na manhã seguinte, 20 de setembro de 1967, Lota ingeriu tranquilizantes em quantidade. Já quase inconsciente quando socorrida por Bishop, que se recriminaria por ter dormido demais, ela foi hospitalizada e entrou em coma. Morreu de falência cardíaca uma semana depois, aos 57 anos.

Embora a maioria dos amigos de Lota no Rio tenha se voltado contra ela, Bishop manteve laços com o Brasil, sobretudo com Ouro Preto, até o início dos anos 70. Aos poucos voltou a viver na Nova Inglaterra, na companhia de outra mulher. Foi vítima de aneurisma cerebral que a matou em 1979, aos 68 anos. Desde então sua fortuna crítica cresce, seu nome muitas vezes é incluído entre os dez poetas americanos mais influentes no século de Eliot, Pound e Cummings.

Como muitos autores que parecem sentir uma necessidade quase física de escrever, Elizabeth Bishop produziu vasta correspondência. Os trechos aqui publicados estão no volume Words in Air: the Complete Correspondence -between Elizabeth Bishop and Robert -Lowell, editado por Thomas Travisano e Saskia Hamilton, publicado em Nova York, no fim de 2008, pela Farrar, Straus and Giroux. Suas 875 páginas emulam as 792 de outro livro epistolar, uma coletânea de cartas enviadas a diversos missivistas, já conhecido do público brasileiro: Uma Arte: as Cartas de Elizabeth Bishop, que a Companhia das Letras publicou em 1995. Eventuais redundâncias entre os dois livros foram evitadas nos trechos editados aqui, que são inéditos no Brasil.

Robert Lowell (1917-77), o destinatário dessas cartas, foi um poeta de estatura semelhante à de Elizabeth Bishop. Provinham do mesmo ambiente, a elite anglo-saxã de Massachusetts. Desenvolveram líricas que evoluem numa influência recíproca admitida por ambos, ele num registro que foi chamado de confessional, ela praticando uma poesia mais descritiva. Tornaram-se amigos em 1947. Assim como Bishop sofria de alcoolismo, Lowell era sujeito a surtos de mania que também resultavam em internações periódicas. Embora mais jovem, obteve uma proeminência precoce que lhe permitiu ajudar Bishop, a quem indicou para sucedê-lo no cargo de consultor de poesia da Biblioteca do Congresso. Continuaria a patrocinar a obra da amiga junto a editores e comitês literários americanos durante sua longa ausência. A seu convite visitou o Brasil, com a mulher e a filha, em meados de 1962. Lowell comparou sua amizade com Bishop à dos escritores ingleses Lytton Strachey e Virginia Woolf.

É maciça, nas cartas, a quantidade de livros e autores que os dois poetas comentam à medida que os lêem. Trocam poemas de própria autoria, cada um reagindo com manifestações de inveja ante a perícia do parceiro. Como seria de esperar, há muita trivialidade. Lowell relata fofocas da política literária americana com minúcia, num estilo enérgico e humorístico, mas muitas vezes de referência longínqua ou cifrada para o leitor brasileiro. Já pelo lado da poeta, o interesse não poderia ser maior nem mais variado. Como tantos viajantes estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, Elizabeth Bishop exalta a natureza e deplora a sociedade. Contra o pano de fundo da desigualdade e do atraso, seu olhar duro logo identifica o elemento provinciano, o hábito irracional, a desordem e a "loucura" em que vivem os brasileiros: "O Brasil é mesmo um horror." Nem por isso ela fica insensível a certa doçura na familiaridade, na ênfase afetiva das relações pessoais, outro traço assíduo na historiografia que não lhe passou despercebido no cotidiano.

Em sua opinião, Gilberto Freyre é "legível", embora faça ressalva a sua condescendência para com a escravidão. Gosta de Camões ("soberbo") e de Vieira ("excelente"), diz que está "estudando" Fernando Pessoa. É entusiástica quanto a Os Sertões, de Euclides da Cunha, que considera o melhor na literatura local depois de Machado de Assis. Ficou tão encantada com Minha Vida de Menina, o diário de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant) sobre sua infância em Diamantina, que o traduziu e publicou em inglês. Escreve que João Cabral de Melo Neto é dos poucos poetas brasileiros que de fato aprecia - os outros seriam Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Viu telas de Francis Bacon na Bienal de São Paulo de 1959. Desanima de suas gestões para introduzir as amigas Clarice Lispector e Rachel de Queiroz nos Estados Unidos. Critica os poemas concretos, que "parecem experiências pré-1914 com uma pitada de Cummings". E conta ao menos uma peripécia amorosa de Vinicius de Moraes, "que não consegue parar de beber e casar".

Considere-se, no entanto, a aspereza desta passagem: "Se você nunca vê um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom - ou se você nunca na vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom e que Villa-Lobos é o maior etc." O principal valor destas cartas talvez se deva à posição privilegiada da autora ao contemplar o panorama brasileiro nos "anos dourados" das décadas de 50 e 60. A crítica é unânime em ressaltar, entre as qualidades literárias de Bishop, a precisão verbal e a profundidade descritiva. Tinha, além disso, o olho treinado de uma turista quase profissional, tomada pelo demônio geográfico que a fez viajar como nômade pela vida afora e espalhou topônimos e estrangeirismos ao longo de sua obra, na qual o deslocamento é tantas vezes assunto. Algo em sua atitude para com o Brasil tinha a imparcialidade da indiferença: ela desceu na primeira escala do navio e permaneceu ostensivamente por causa da paixão por Lota. Pouco do que vê, ouve e lê, num lugar onde a competição rarefeita lhe parecia induzir à preguiça, passa pelo rigor de seu crivo.

Apesar de certo folclore diáfano no qual figuram verdadeiros clubes de lesbianismo clandestino no Rio de Janeiro da década de 50 - casas de praia alugadas por mulheres galantes em recantos ermos, onde se reuniam irmanadas na cumplicidade de suas inclinações, parte das convidadas em vestidos longos, parte envergando terno e gravata -, nada disso nem sequer é sugerido nas cartas desta narradora pudica e, à sua maneira, puritana. Por motivos de gosto e até de geração (ela nasceu em 1911), toda conotação sexual é omitida e qualquer explicitação nesse sentido é condenada, como nas passagens em que parece recriminar as novas maneiras que anunciavam a revolução sexual entre os estudantes dos anos 60.

O feminismo, que tanto ajudaria a alavancar a reputação póstuma de sua obra, não exerceu apelo sobre Bishop. Como é comum entre poetas, ela não se interessava por política nem tampouco a compreendia. Suas opiniões a respeito tendiam ao conservador, reflexo, talvez, do ambiente elitista em que se formou ou de seu próprio temperamento individualista. Diante de uma comissão de diplomatas chineses, por exemplo, que visitava o Rio em 1961, ela conta que "pela primeira vez, eu creio, um verdadeiro calafrio de medo e horror ao comunismo me desceu pela espinha. Eram uns homenzinhos lúgubres de aparência ignorante, seus olhos queimando de paixão justiceira".

Após a renúncia de Jânio Quadros e a vitória do movimento para dar posse ao vice João Goulart na Presidência, em 1961, ela adverte o amigo: "Não acredite no que você vir [na imprensa] sobre 'legalidade' e salvar a preciosa 'Constituição'! - Todos os velhos vigaristas estão correndo de volta aos cargos o mais depressa que podem - e o pc [Partido Comunista] agora age às claras."

Se a etnografia involuntária de Bishop é de uma objetividade quase infalível, sua apreciação da política brasileira é sempre parcial. Numa das cartas, depois de dizer com casualidade cômica, como se falasse de meteorologia, que "tivemos uma revolução na semana passada", ela explica: "O motivo pelo qual menciono isso é que um dos meus melhores amigos aqui foi o líder da revolução que não aconteceu - um deputado e editor de jornal que foi responsável por se livrar de Vargas no ano passado [1954] quase sozinho. É um homem maravilhoso, realmente - 41, acho, muito corajoso e inteligente (...) e pode acabar sendo qualquer coisa, claro, até mesmo ditador; católico, mas liberal." Lowell, que conheceu Carlos Lacerda pessoalmente, tinha impressão semelhante e notou, ao compará-lo a Robert Kennedy, "uma sensação assustadora de ambição e poder" em torno de ambos.

A simpatia se converte em apoio apaixonado conforme o amigo se torna governador e possibilita a Lota realizar o sonho de sua vida no Flamengo. Enquanto isso, a polarização que conduziu ao desfecho de 1964 crescia. Em novembro de 1963 Bishop diz que "estamos esperando um golpe [em português] (do presidente) a qualquer momento". Em abril do ano seguinte, logo depois da derrubada de Goulart: "Mais de 3 mil prisioneiros apenas no Rio. Carlos deu várias e várias ordens, nenhuma brutalidade policial será permitida etc. - mas incidentes ocorrem com qualquer polícia."

Mais tarde, quando Lacerda, já dissidente do regime que ajudara a instalar, articulou a Frente Ampla (1966-8) com os adversários Juscelino Kubitschek e João Goulart, ela escreve que "Carlos traiu todo mundo de forma horrível - depois de todos os anos de luta contra a gangue do velho Vargas e a corrupção, de repente, por razões políticas, ele se passou para o lado deles (e dos comunistas) outra vez." Como não poderia deixar de ser, seus pontos de vista em tais assuntos espelham os de Lota, que a essa altura já estava afastada de Lacerda, as relações entre ambos praticamente rompidas.

O que vemos aqui é um Brasil duplamente remoto, focalizado a partir do distanciamento da autora (exceto nas diatribes políticas), mas também do afastamento de meio século decorrido desde então. Muito antes disso, a primeira onda do modernismo brasileiro - a da geração de 1922 - havia demonstrado a falsidade de toda arte que imitasse os moldes europeus cultivados por uma elite estreita, enquanto o país real jazia desconhecido. Desde Sílvio Romero e Euclides da Cunha essa descoberta interior, na qual se confundem imensidões geográficas e sociais, seria uma busca permanente, o Santo Graal - o muiraquitã da cultura brasileira rumo à utopia da sua própria realização.

Elizabeth Bishop chegou quando se esboçava o período que muitos consideram uma renascença tropical, época de reinvenção nacional no romance, na poesia, no cinema, na arquitetura, no teatro, na música popular. O vetor mais arcaico e o mais dinâmico na sociedade - expressos em antagonismos como sertão/litoral, folclórico/moderno, passado/futuro - eram mobilizados pela primeira vez numa síntese artística original e poderosa, que prenunciava a síntese social a ser produzida pelas reformas que a ruptura de 1964 afinal frustrou. Era como uma promessa suspensa a meio caminho, admirável e arruinada. Sob um enfoque menos peremptório ou mais cumulativo dos acontecimentos conforme eles se distanciam no tempo, a leitura atual das cartas brasileiras de Elizabeth Bishop - com seu frio discernimento sobre tudo o que não seja política - parece deslocar a posição daquela fase dourada na História: não tanto um apogeu seguido de prematuro declínio, mas ainda a turbulenta adolescência de uma sociedade que continua em formação.


a/c de Macedo Soares
rua Antônio Vieira 5, Leme
Rio de Janeiro, Brasil
21 de março de 1952

Querido Cal[1],

Puxa, comecei esta carta ontem & fui interrompida & deixei a máquina de escrever descoberta durante a noite & acabei tendo de tirar de cima dela uma teia de aranha grande e espessa. Tenho uma carta sua escrita no dia 6 de novembro. Acho que escrevi para você mais ou menos na mesma época - escrevi umas duas vezes, mas não sei se você chegou a receber alguma delas -, acabei de receber a carta de 6 de novembro, uma semana atrás mais ou menos, e logo depois chegou a carta de 16 de fevereiro. A primeira aparentemente ficou naquele lote de cartas que o Vassar Club deixou metido no escaninho por mais de três meses. Bem, me desculpe. Eu estava morrendo de vontade de receber notícias suas, sem saber se o American Express em Amsterdã encontraria você ou não etc. (Foi para lá que mandei uma carta, eu acho.) Comecei com a intenção de percorrer o continente inteiro, mas parece que virei uma brasileira caseira e agora fico tão agitada com uma viagem de jipe para comprar querosene num vilarejo vizinho quanto ficava em novembro com a idéia da minha viagem em torno do cabo Horn. Eu não tinha nenhum interesse especial pelo Brasil, no início, mas foi a primeira parada do navio cargueiro em que eu viajava. Na verdade, queria viajar pelo mundo e terminar a viagem mais ou menos por agora, visitando você, mas aconteceu que cometeram algum engano com as minhas reservas naquele cargueiro e assim, por acaso, acabei ficando na América do Sul. Tenho uns amigos brasileiros no Rio, que conheci em Nova York, e assim fui com a intenção de ficar duas semanas para visitá-los e acabei ficando quatro meses. Mas não tenho ficado muito tempo no Rio - vou lá só para cortar o cabelo e tratar do meu visto, de vez em quando. Lota de M. S., minha anfitriã, tem um apartamento lá, na famosa praia de cartão-postal, mas passa a maior parte do tempo no campo, se bem que essa palavra delicada dificilmente se adapte ao caso, Petrópolis, uma estação de veraneio nas montanhas, rústica e deslumbrante, a uns 65 quilômetros de distância. Ela está construindo uma ca-sa ultramoderna na encosta de uma montanha de granito preto, com uma cascata na ponta, as nuvens invadem a sala no meio da nossa conversa etc. A casa está inacabada e usamos lampiões de querosene, não tem assoalho - só cimento coberto por pegadas de cachorros. A "família" consistia em uma outra garota americana, também amiga minha em Nova York, uns condes poloneses por um tempo, o arquiteto[2] nos fins de semana etc., todos numa estranha miscelânea de três ou quatro línguas, que me agrada muito. Depois de algumas semanas de chuva (que, por alguma ilusão racial, acho, são chamadas de "verão" [sic]), a cozinheira foi embora e durante mais ou menos um mês eu cuidei da cozinha. Gosto de cozinhar etc., mas não estou acostumada a enfrentar os ingredientes em estado bruto, todos com casca, crus, com pele ou ainda vivos. Pois é, agora posso cozinhar carne de cabra - com molho ao vinho. E estamos com uma nova cozinheira, do "Norte" (o "Norte" é encarado mais ou menos como nós encaramos o "Sul"), que chegou munida de um enorme crucifixo cromado. Ela "adora a natureza", assim a gente espera que ela fique aqui. Mas ela gosta tanto da natureza que, quando a gente precisa dela, em geral está lá fora colhendo flores na montanha. A cozinha seria aprovada por Max Schling, com orquídeas e tudo o mais. Esta manhã resolvi que eu queria um ovo. Falei cinco minutos, o ovo veio muito mole e ela disse que na cozinha há dois relógios que não estão andando exatamente juntos e então ela não tinha como medir o tempo do cozimento do ovo, é claro.

Quando começo a descrever, acho difícil parar, como você está vendo, mas estou passando uma temporada muito boa mesmo e só vou voltar porque ainda quero conhecer mais coisas da América do Sul e escrever mais um pouco sobre o assunto. Tenho de fazer uma apresentação em Bryn Mawr, em maio. Vou partir daqui a um mês, mas provavelmente vou retornar para cá em julho. Então, acho que no próximo inverno eu já vou ter visto o bastante por um tempo e também já vou ter economizado dinheiro bastante para viajar para a Europa, daqui provavelmente, ou então de Buenos Aires. Não sei se você ia gostar, e na verdade vi muito pouca coisa do país, e é tão extraordinário. Provavelmente é demasiado informe para você e as pessoas não são em número suficiente. Lota conhece "todo mundo" - conheci ou vi muitos dos luminares da literatura -, mas ela vive "retirada", como diz, e bastante farta do Brasil, como todos os brasileiros que conheci. Eles desejam: 1) Paris; 2) Nova York. (NY é um gosto recente, só uns dez anos de idade - antes, era considerada excessivamente vulgar e Lota foi muito criticada por passar mais de dois anos lá.) Há um grande renascimento do catolicismo pelo que vejo e famílias grandes são o estilo predominante: dez ou doze. Todos os meninos se chamam "José" alguma coisa e todas as meninas se chamam "Maria" alguma coisa. Esses nomes são sempre abreviados em apelidos absurdos que pegam para a vida toda. Conheci um muito elegante, "Magu", para Maria Augusta - ou "dona Bebê", para uma senhora idosa. Eu agora sou a "dona Elizabétchi". Bem, eu não me incomodaria com as famílias grandes se ficassem restritas à classe alta (e como tudo fica simples quando não existe classe média). Por fim, recomecei a escrever - terminei dois poemas compridos. Não tenho lido grande coisa, apesar de termos aqui uma biblioteca excelente - agora ando lendo um pouco de poesia portuguesa. Consigo ler porque sei espanhol, mas não consigo de maneira alguma pronunciar os versos - todo mundo que encontro em geral fala um inglês ou um francês excelente.

Pelo amor de Deus me mantenha informada dos seus endereços para eu poder escrever para você, e espero que você também escreva para mim. Na certa vou precisar disso mais do que você. Vou estar aqui até 19 de abril, depois vou para Key West passar uma semana, depois vou passar seis semanas no Hotel Grosvenor, na Quinta Avenida com a rua Dez. Quero ver alguns poemas. Antonio Vieira, me diz Lota, foi um santo português menor que "sofria de bilocação" (muito mais engraçado em francês). Agora estou estudando os poemas do poeta português moderno mais popu-lar, Fernando Pessoa - já ouviu falar? -, que tinha uma personalidade cindida em quatro; escrevia quatro tipos diferentes de poesia, sob quatro nomes di-ferentes - volumes diferentes para cada um deles -, e se suicidou[3] em meados da década de 30, mas se estivesse vivo teria apenas a idade da senhorita Moore[4]. Como já escrevi para Randall[5] - talvez a cisão da personalidade seja uma coisa particularmente portuguesa -, já topei com uns casos reais desse tipo.

Ah, meu título agora é (já faz alguns meses) A Cold Spring (Uma Primavera Fria) - há um poema também com esse título. E agora acho que vai sair em novembro.

Mande um beijo para Elizabeth. O que ela anda escrevendo? Por favor, escreva de novo, mais cedo. Tenho um tucano - chamado Tio Sam, num rompante de chauvinismo. Ele é maravilhoso, engole jóias ou finge engolir, pode jogar bola com uvas e tem olhos brilhantes como luzes de neon.

Com amor,

Elizabeth, Samambaia - o lugar onde moro, perto de Petrópolis. O endereço é Rio. Mas você ponha os dois! Uma carta aérea aqui custa 10 centavos. Sua carta veio de navio.

28 de julho de 1953

Caríssimo Cal,

Vou ter alguns poemas em inglês e português publicados num suplemento literário daqui - não existem revistas, assim os jornais cobrem a literatura com graus variados de seriedade. O poeta brasileiro Manuel Bandeira, um homem de uns 65 anos, está traduzindo os poemas, e traduzindo extremamente bem, eu acho. Tenho tentado retribuir a gentileza: tenho lido um bocado de poesia brasileira de lá para cá e é tudo gracioso, delicado, eu acho, se bem que Bandeira às vezes é extremamente mordaz, como um Cummings mais amável. Mas não há meios de escrever em português. No entanto, agora consigo ler Camões etc. muito bem; ele e seus sonetos são soberbos, tão bons quanto qualquer soneto em inglês, sem dúvida.

Porém o Brasil é mesmo um horror; mas um dia vou lhe contar mais. Você ficaria de fato fascinado pelas histórias de família. A sociedade do Rio é inacreditável. Proust nos trópicos com samba em vez da pequena melodia de Vinteuil - não, isso é banal. Mas é algo assim.

Aqui eu sou "dona Elizabétchi" - sempre os prenomes. Você seria "seu Roberto". Não, acho que como tem um diploma seria o "doutor Roberto".

"Calígula" não surpreenderia ninguém - conheço um Tácito, um Aristides, um Teófilo, um Praxíteles - & os apelidos são maravilhosos. Magu é o mais encantador - uma amiga chamada Maria Augusta. Lota na verdade se chama Maria Carlota + 3 nomes.

E qual é o seu endereço: Burlington St. ou Summit Street?

O meu é: rua Antonio Vieira 5, Leme, Rio de Janeiro. É o apartamento de Lota no Rio.

Antonio Vieira foi um excelente escritor e também um santo incomum...



Samambaia

5 de dezembro de 1953

Querido Cal,

Use uma piteira Dunhill Denicontina - mas na certa você já deve usar há anos. Gosto muito delas e a gente pode ficar mascando enquanto datilografa, porém as minhas agora já estão muito gastas. E a gente pode comprar umas bem bonitas, vermelhas e azuis. Aqui a gente paga muito caro pelos cigarros americanos. Pensei que eu sempre ia conseguir fumar qualquer cigarro velho e gostei do Gauloise em Paris etc., mas os cigarros brasileiros - experimentei dúzias - são de fato muito ruins. (O melhor é o Louis xv.) Lembro que meus amigos sempre ficaram muito irritados quando pararam de fumar e isso agora deve ter virado um verdadeiro vício nos eua - vejo até anúncios de cigarros de mentira para ficar chupando. Em geral só fumo quando estou trabalhando, do contrário são três ou quatro por dia e nunca mais de vinte. Mas aqui eu consegui parar de beber quase completamente, o que sem dúvida é mais importante para mim. Por aqui, ninguém pensa nisso: um drinque de uísque escocês ou de gim com tônica, se a pessoa está tentando ser chique. A cerveja é maravilhosa, mas eu só gosto de tomar um pouco. O resultado de ficar tomando cafezinhos toda hora - e mais a disenteria, que vai e vem - é que perdi 9 quilos e continuo emagrecendo. Acredito que você nunca me viu no meu tamanho normal.

Uma coisa boa aqui: tenho lido mais do que nunca - quase todo o Dickens, sobre o qual estou escrevendo agora um soneto pequeno, concentrado, & me engalfinhando com o português. Camões é muito parecido com o que Ezra Pound diz, mas você já viu um dos seus sonetos religiosos? São soberbos. "Jacó e Raquel" etc. Provavelmente você conseguirá ler com toda facilidade. Tenho de tentar escrever para Randall. Por alguma razão, sinto que foi uma coisa muito nobre da parte dele deixar-me em Poetry and the Age[6] e, se estou só sendo masoquista ou não, eu não sei.

Nossos melhores votos e amor para vocês dois,

Elizabeth



Samambaia

30 de novembro de 1954

Querido Cal,

 Estou me dedicando, sobretudo, a uma tradução de um livro brasileiro.[7] Talvez eu já tenha falado com você sobre ele há muito tempo - não tenho certeza; comecei a fazer isso só para aprender português e depois resolvi que poderia ser uma tradução muito bem-sucedida; assim, depois de alguns inícios frustrados já estou agora quase na metade do livro e contratei uma datilógrafa que escreve em inglês etc. É o diário de uma garota - um diário fictício, porém. Parece uma coisa horrível, eu receio: uma garota entre os 12 e os 15 anos, que mora numa cidade dedicada à exploração mineral chamada Diamantina, na década de 1890. Há uma imensa família de tias, tios e ex-escravos, comandados por uma avó, todos muito pobres, religiosos e supersticiosos, e a garota escrevia de fato extremamente bem. É divertida, obstinada e as anedotas são repletas de detalhes sobre a vida, a comida, os padres etc. Acho que você vai gostar. Agora ela é uma viúva rica no Rio, 75 anos.[8] O marido, de uns 80 anos, foi presidente do Banco do Brasil.[9] Não li muita literatura brasileira, mas este é de longe o melhor livro que li, desde o famoso Machado de Assis, que pelo que vejo é a única glória das letras que existe por aqui. (Minha amiga Lota tem um poeta na árvore da família, que era de uma beleza arrebatadora, ganhou um prêmio em um baile à fantasia, num Carnaval - disfarçado de mulher -,  escrevia poesia romântica ruim e morreu aos 22 anos dizendo "Que pena...".)



10 de dezembro

Com muito amor e saudades, como dizem por aqui, palavra muito bonita que parece incluir, num só, todos os sentimentos relativos a amigos distantes.

Elizabeth



Samambaia

20 de maio de 1955

Caríssimo Cal,

O jugo da igreja aqui é quase inexistente. Os pobres são batizados e enterrados - não se casam - e o padre não vai ao cemitério. A família vai andando devagar, debaixo de guarda-chuvas pretos, em geral levando um caixão coberto por um papel crepom preto. No entanto, o Congresso Eucarístico está prestes a se realizar no Rio: são esperados 600 mil peregrinos, uma terrível falta de água, pouca comida; além do mais, o tifo ou a febre tifóide - não sei qual dos dois - já está grassando. Promete ser uma coisa muito, muito medieval. Certa mulher da sociedade doou todas as suas jóias. Esqueci quanto valem agora, talvez centenas de milhares - dois punhados de jóias para fazer o monstrum.

Ah, e na minha carta comprida eu agradecia a você pela boneca. Na verdade pegar a boneca na alfândega foi o que suscitou a carta (primeira parte de abril). No caso de a carta nunca aparecer, vou repetir tudo outra vez para você: fiquei com o embrulho aqui comigo durante duas semanas mais ou menos e pensei que era uma outra coisa; por isso não me dei ao trabalho de abrir até que fui para o Rio passar uns dias. É sempre muito divertido ir à Alfandaga (gosto muito dessa palavra), mesmo que isso signifique toda sorte de pequenos selos, assinaturas, carimbos de funcionários, cera de lacre etc. Era um dia aterradoramente quente e todo -mundo estava esperando para retirar pequenos aparelhos elétricos a um alto custo ou coisas feitas de plástico, e um velho ao meu lado, um monte de filactérios e solidéus etc.; assim, a boneca provocou uma enorme sensação, a única coisa antique em muitos anos, imagino. O homem que me atendeu teve de chamar seus "colegas" - palavra muito apreciada por aqui - para ver e fiz o melhor que pude no meu português trôpego para explicar o que era. No final ela foi colocada de volta na caixa (obrigado a você também pelo bom suprimento de papel de seda branco) e lacrada com uma porção de cera vermelha e por selos barrocos, e fomos embora num táxi. Ela é extraordinária e eu gostaria de saber mais a respeito disso - a respeito dela, na verdade -, como eu disse na minha outra carta. Acho que gostei mais da parte detrás do avental, com os lacinhos, mas as perninhas também são muito bonitas. Eu a guardo na estante de livros do meu quarto: uns dias de frente para o quarto, outros dias de costas, entre um ninho de passarinho e um cachorro de barro da Bahia, e ela tem uma ótima aparência, no seu jeito triste. O jardineiro, ao encerar o chão, disse que ela parecia uma loura que ele conhece... (A propósito, não tive de pagar nenhum imposto.)

Por favor, escreva uma autobiografia - ou esboços para uma autobiografia. Os dois ou três contos desse tipo que consegui escrever foram, de todo modo, uma grande satisfação - o desejo de pôr as coisas no seu lugar e contar a verdade. É quase impossível não dizer a verdade na poesia, eu acho, mas na prosa ela não pára de se esquivar da gente de uma forma engraçadíssima. Minha tradução vai avançando devagar - a primeira terça parte agora está em n.y. Aí pela semana que vem, mais ou menos, vou viajar para a cidade onde tudo aquilo aconteceu, a fim de escrever a introdução: Diamantina. Hoje em dia é um lugar completamente abandonado e de imponente, lindo barroco tardio português - reboco branco e pedra-sabão verde, chafarizes, pontes e igrejas. Cidade absolutamente morta, embora 100 anos atrás estivesse repleta de europeus que faziam fortuna e fosse conhecida em todo o mundo. Acho que vamos ser ciceroneadas pelo prefeito! Eles são carentes de diversão, é compreensível. Na minha carta que se perdeu, eu reclamava amargamente de nunca mais ser capaz de escrever um poema decente etc. etc., e depois de me forçar - levei cinco meses - para terminar uma coisa dura, completamente artificial, de 32 versos, tudo acabou dando certo e agora parece que voltei a escrever. Por favor, reze por mim para um santo anglicano. Estou tão feliz com a sua "divulgação", e agradecida, porque isso certamente vai ser de grande ajuda também.

Acabei de ir lá fora e gritar LUZ! para as montanhas negras, de um jeito bem diferente de Goethe[10] (mais parecido com Deus), e miraculosamente alguém lá embaixo, na casa, me ouviu e ligou o gerador. Está escuro, frio e chuvoso. Um dia, um dia, eu gostaria muito que você e E.[11] viessem me visitar aqui. A América do Sul é insatisfatória para quem viaja, eu receio, mas vocês gostariam muito de algumas coisas - & temos espaço de sobra.

Com amor,

Elizabeth



Petrópolis

23 de novembro de 1955

Querido Cal,

Dito e feito. Aqui estão o primeiro e o último poema de uma leva em que ando trabalhando. O último[12] eu acabei de escrever ontem & provavelmente não deveria mandar tão cedo. Mas se ele não der certo como poema, pode dar certo como uma carta, pois esse tipo de coisa é o cotidiano por aqui.

Tivemos uma revolução na semana passada,[13] uma revolução-antirrevolução, e neste exato momento a situação parece muito ruim, apesar de ter começado de maneira muito cordial. Estamos na pior temporada de chuvas e, como disse Lota, ninguém nem sonha em ir à rua para lutar. A velha gangue do ditador está de volta outra vez. (Se por acaso você ler alguma coisa sobre o assunto nos jornais, não acredite no que dizem. O New York Times está entendendo a situação de forma completamente equivocada - mais um passo em favor da "democracia" etc. Acho que nossos repórteres recebem ordens de sempre concordar com quem estiver no poder.) O motivo pelo qual estou mencionando isso é porque um de meus melhores amigos aqui era o líder da revolução que não aconteceu - um editor de jornal e deputado, responsável por se livrar de Vargas, no ano passado, quase que sozinho.[14] É um homem maravilhoso, de verdade - 41 anos, eu acho, muito corajoso e inteligente, brilhante como orador e homem de tevê, que pode acabar sendo qualquer coisa, é claro, até um ditador; católico, mas de forma liberal. Pois bem - ele teve de fugir do país, primeiro num navio da Marinha de Guerra (o velho us St. -Louis, hoje Tamandaré), depois voltou para a embaixada cubana e agora está em Nova York. Sua esposa e seus filhos vão partir depois. Escrevi para diversas pessoas em Nova York e me pergunto se, no caso de ele ir para Boston, você e E. não estariam interessados em conhecê-lo. Tenho certeza de que você ia gostar dele e os dois iam se dar bem. Ele fala inglês e está interessado em tudo o que existe sob o sol, além de política - acabou de construir uma casa perto de mim, aqui no campo, e descobriu a jardinagem e a culi-nária. Sua última viagem a Nova York durou só dois dias e de algum jeito ainda arranjou tempo para comprar vinte frascos de temperos para mim.

Conhece você de nome, eu sei. Mencionei você quando escrevi para ele, mas não dei seu endereço - vou mandar depois.  O endereço dele e seu nome são: Carlos Lacerda: a/c Hugo Gouthier, cônsul, Consulado do Brasil, 10 Rockefeller Plaza, n.y.

Ah, lembrei, foi ele que mandou para você aquela boneca pelo correio a meu pedido. Ele conta histórias ótimas - sobre o rei Farouk num piquenique etc. Estou escrevendo para Agnes Mongan também. Ela o conheceu quando esteve aqui. Não creio que você vá achar isso um fardo, e ele vai fazer umas transmissões de rádio etc. em American Life e eu quero mostrar para ele o lado "espiritual" disso. Esconda aquele automóvel!

Estou mergulhada até o pescoço, ou mais ainda, no segundo volume da vida de Freud.[15] É maravilhoso e assustador, embora o doutor Jones seja sem sal e dê um trabalho danado para ler.

Com amor para vocês dois,

Elizabeth

(Manuelzinho = pequeno Manuel; h = y, em inglês)

27 de fevereiro de 1957

Temo que hoje seja o meu último dia de paz por algum tempo. Amanhã vamos para o Rio encontrar uma amiga americana que veio para o Carnaval - uma senhora rica, idosa, casada várias vezes, que começou sua carreira dirigindo uma ambulância na Primeira Guerra Mundial. Nós temos pavor de Carnaval, mas nunca vi direito como é e esta será minha grande chance de fazer isso. Temos lugares na arquibancada com o prefeito do Rio[16] etc., onde teremos de ficar durante toda a noite de domingo, enquanto ele julga as Escolas de Samba dos negros. Porém isso é o melhor do Carnaval. Consomem o ano inteiro todo o seu dinheiro fazendo ensaios, fantasias, compondo canções de fato soberbas etc. Na maior parte, o Carnaval se degenerou de forma triste. Vi um deles em uma horrorosa noite de chuva. Foi pouco depois do filme David & Bathsheba[17] estrear no Rio e havia milhares de d e b - e aqueles que não eram, pareciam homens usando peitos postiços.

Uma prova final com a costureira esta tarde. Temos cinco, juro, trabalhando para nós agora, mas ainda tenho muito receio de que aquilo que parece chique no Rio vá parecer St. Louis de 1948, em Nova York - ou em Boston. Vou partir daqui no dia 15 de março e sigo com a americana para a Bahia e o Recife, depois é provável que vá para Porto Rico - se eu conseguir convencê-la a desistir de suas idéias sobre o Amazonas. Vou ficar uma semana em Key West, até 5 de abril - a/c senhora m.c. Stevens, caixa postal 668. Lota e eu vamos nos encontrar em Nova York, onde sublocamos um apartamento: endereço e telefone ignorados no presente momento. Estou dividida entre os prazeres de ser incansavelmente servida, ainda que de modo displicente, por todos os nossos pequenos negros, ou fazer uns ovos mexidos direito para mim mesma... Lota está ansiosa para trazer alimentos para o café da manhã. Já contei a você que da última vez que voltamos de avião trouxemos 4 litros de leite homogeneizado na geladeira do avião e demos uma festa de flocos de milho bem no Carnaval? Também foi um grande sucesso.

Bem, ainda tenho de refletir mais um pouco sobre a minha vontade. Você gostaria que eu mandasse alguma coisa? Não consigo ler Amy Lowell[18] - embora ela pareça ser muito popular por aqui!

Lembranças para Elizabeth, e espero poder ver você em breve.

Com muito amor,

Elizabeth



Castine, Maine

3 de julho de 1957

Querida Elizabeth,

Bem, Cummings foi apresentado como alguém que era contra o comunismo quando ainda era perigoso tomar essa posição. E lá ficamos nós sentados, uma fileira deveras eminente e abominável - todas as idades, todos os níveis de inocência e cinismo - enquanto Cummings lia poemas ultrajantes e sentimentais, bons e ruins, de ambos os tipos. Cerca de 8 mil pessoas escutavam e aqueles que não conseguiam ouvir se aglomeravam em enorme multidão do outro lado do poço do Jardim Público para ver pinturas não objetivistas. A revolução chegou, eu creio, embora continuemos a ser criaturas de carne e osso.

Amor,

Cal



Primeiro de abril [de 1958]

dia da mentira

Querido Cal,

O Rio está mais louco do que nunca. Falta água em partes da cidade e o gás anda escasso; em cada edifício só um elevador funciona e há filas intermináveis, quarteirões inteiros para pegar os ônibus miúdos, cromados e brilhantes ou os bondes velhos e abertos. Eles têm setores de primeira classe e segunda classe, embora ninguém mais preste a menor atenção a isso. Há uns poucos ônibus elétricos enormes e novos - do tipo caminhão com reboque, com um engate e oito rodas. São chamados "papa-filas", como dragões. Enquanto isso o Brasil es-tá construindo uma capital novinha em folha, longe, no interior, onde sequer existia uma estrada, um ano atrás. Dizem que é exatamente igual a uma ci-dade de fronteira nos filmes em cartaz, uma fileira de prédios provisórios feitos de madeira, bares e motéis, e uma rua de lama. Eu gostaria de ver.

Sua,

Elizabeth

Domingo, 20 de abril de 1958.

Querida Elizabeth,

Você faz as clínicas de reabilitação parecerem portos para poetas, no entanto eu agora estou bem. Ontem comecei a ler Helena Morley. Eu estava num quarto horroroso - consolo de lareira creme, janelas creme de 3 metros, no quarto vizinho um professor de direito de Harvard com depressão, lendo Look Back in Anger e as Decisões Inéditas de Brandeis,[19] fazendo ruídos iguais aos de um pombo (às vezes eram pombos de verdade) e gemendo "Décadas, Oh, décadas!" e "HorrOR, HorrOR". Helena é de fato arrebatador; tudo é uma história. De repente percebi que estava sublinhando quase que todas as páginas. Ela alcança tanta coisa que um autor de verdade - andei lendo A Princesa de Clèves e O Pai Goriot - não consegue em centenas de páginas. Eu gosto do "protetor", o padre fofoqueiro, sua divertida paráfrase de contos adultos ruins e pantomimas banais. Nem em um milhão de anos eu conseguiria a fresca naturalidade mundana que ela tem. Sua tradução parece um original.



8 de maio de 1958

Querido Cal,

E agora os últimos boatos são de que Pound está vindo para cá. Pelo menos um amigo telefonou do Rio na noite passada e disse que saiu uma carta sobre o assunto no Jornal de Letras. Ainda não vi, mas vou tentar conseguir um exemplar hoje ou amanhã. Será possível? Pensei que ele queria voltar direto para a Itália. Há uma enorme colônia italiana em São Paulo e ele pode muito bem ter amigos fascistas aqui. De fato ele traduziu alguma coisa de Camões e agora o câmbio está extremamente alto (mas os preços por aqui também andam altos...), então eu creio que existem razões para que isso possa ser verdade.

Mas fico tremendamente deprimida ao pensar nele propagando mais idéias antiamericanas por aqui, onde já existe muita gente fazendo isso... Você soube alguma coisa a respeito? Se ele está mesmo vindo para cá, é claro, eu gostaria de visitá-lo no Rio, ajudar a senhora P., se eu puder, e até trazê-lo aqui, quem sabe? Mas na certa ele vai para São Paulo; e se por acaso ele tiver visto aquele meu poema, ou a senhora P., talvez ele não queira me ver. Bem, se você souber de alguma coisa, por favor, me avise... Se ele um dia vier para cá vou ter primeiro de fazer Lota jurar que não vai se exaltar com ele, nem vai começar uma discussão! (Sou covarde, eu sei - mas nunca vi motivo para muita discussão sobre nada, nem sou capaz de suportar discussões.) No fundo, espero que não seja verdade. Já existem malucos demais por aqui. Porém, se for verdade e você souber qual o endereço dele, lá ou aqui, pode mandar para mim, para que eu possa redigir um bilhete? Estou feliz por ele estar livre. (E saiu uma nota antipática dele no Times de Londres, em que diz não estar interessado em poetas e por isso que eles façam o favor de não incomodá-lo - só se interessa por historiadores!)

Como você vê, não tenho muitas novidades. Estamos começando a garagem; é mais uma ponte do que uma garagem e Lota está contente com quinze "homem" para comandar. Parece que finalmente voltei a escrever poemas - mas são todos poemas tão velhos que mais parece uma faxina no sótão. Só tem um novo e é sobre Miami... Também ando escrevendo sobre a neve na Nova Escócia - ninguém vai imaginar que estamos tendo maravilhosos dias de inverno por aqui, nuvens & crepúsculos etc., bem aqui debaixo do meu nariz. Nosso amigo Alfredo[20] - a pessoa com quem a gente acha que você podia ficar no Rio - anda grudado numa garota americana e todo sábado ou domingo os dois vêm juntos para cá. Ela também nasceu em Worcester. É viúva de um compositor brasileiro - ex-comunista, agora católica e escreve romances[21]. Vai me trazer um romance proletário para eu ler. Ah, céus. Fizemos um lindo passeio a Teresópolis no fim de semana passado - uma pequena cidade nas montanhas, muito mais alta e mais fria, batizada em homenagem à esposa de dom Pedro, assim como Petrópolis recebeu esse nome em homenagem a ele. Eu gostaria que você visse aquele cenário - e vou incluir na carta um cartão-postal muito ruim para lhe dar uma idéia, se eu conseguir lembrar onde pus. Tem um jeito de coisa chinesa: picos finos como dedos, uma lua nova vermelha e embaixo um rinque de patinação com homens jogando hóquei em patins - todos de uniforme de cetim verde ou vermelho. Lota disse para Alfredo não ser um "motorista no banco de trás...".

Desculpe pela carta maçante, mas com muito amor,

Elizabeth



 [Dezembro de 1958]

Querido Cal,

Este cartão veio do Japão para as montanhas do Brasil, para uma loja japonesa - naturalmente, as montanhas não são estas. Fiquei com vontade de escrever alguma coisa para você e isto é o que tenho à mão... O presente foi trazido por uma certa senhora Ovalle um dia desses (na verdade uma garota de Worcester - a tal que mora com um velho amigo de Lota[22] em cuja casa nós planejamos hospedar você!) - eu espero que ela ponha no correio. (Pedi que fizesse isso.) Estou muito contente por deixar de lado o Dr. Jivago (como escrevem os franceses) e esperar por Dr. Zhivago. Agora eu gostaria de também mandar para você um disco de samba que é de fato bom e estranho, mas eu não sabia que teria a chance de lhe enviar nada.

Lota está comprando um gato siamês, não sei se já lhe contei isso, e resolveu lhe dar o nome de Suzuki - o que fica a alguns países orientais de distância... Não podemos eleger Jarrell de novo e para Flannery O'Connor (o mais cedo possível, no caso dela?) darei todo o apoio. Aqui é lindo, mas eu e Lota estamos nos sentindo tremendamente tristes e com muitas saudades (palavra surrada). Ah, por favor, me conte logo: acha que vai passar por Sevilha na sua viagem pela Espanha? Se for assim, eu gostaria de escrever para um amigo meu que está lá, um dos poucos poetas brasileiros que eu de fato admiro, um sujeito muito boa praça - também fala inglês, tem um carro e sei que ficaria encantado de receber você e até de passear com você pela Andaluzia. (Conversamos sobre você.) (Ele também tem uma esposa, que eu receio não vá agradar a E., além de ter já nem sei quantos filhos, nesta altura.) Seus ancestrais são quase pré-romanos, pelo que entendi, e ele conta umas histórias muito boas sobre a árvore genealógica da família. (O nome dele é João Cabral de Melo Neto - o último item significa apenas "neto", portanto você já pode ver como é.) Agora estamos de volta às montanhas certas. "A mulher de pedra." Do jeito como você o retrata, Snodgrass[23] é muito triste, mas a poesia dele também é. não confie no "mau poeta grisalho" - ele conta tudo, sabe, lamento dizer. A sua versão de tudo, a bem dizer, e nos lugares errados. Eu gosto da piada sobre o avião - é exatamente assim que são aqueles índios. Uma das minhas favoritas foi a do garoto na nossa viagem que, quando pediram para posar para uma foto, educadamente tirou todas as roupas. (Depois fui nadar com ele.) Não sei por que não escrevi uma carta e acabei logo com o assunto, mas por favor nunca use o endereço acima - é apenas para uso local. (E o telefone não está funcionando nesta semana.) Eu queria lhe contar uma boa piada brasileira - mas acabei de ver a piada contada na Time também -, com a esperança de que você não leia (não tenha de ler) essa publicação abominável como eu faço: a inflação aqui anda mesmo muito ruim - houve duas pequenas quase revoluções. Bem, o homem que fixa o índice de reajuste dos preços foi mandado para o enterro do papa e agora os brasileiros andam dizendo: "Ele chegou lá e o papa pulou de xii para xxiii."

Minha campainha "hospitalar" especialmente suave me avisa que está na hora do jantar. As estrelas estão enormes - há uma bem amarela. Tenho um mapa celeste que mostra o céu daqui em todos os meses do ano e nunca fui capaz de estabelecer muita correspondência entre o mapa e as estrelas de fato - não sei se é boa idéia ter de trocar o nome de tudo o que a gente conhece numa fase tão tardia da vida!

Com muito amor,

Elizabeth



2 de fevereiro de 1959

Querido Cal,

Passamos duas semanas muito agradáveis longe da vida doméstica - fomos pescar e pegamos uns golfinhos enormes e outros peixes. Cabo Frio é uma cidadezinha miserável; todas as aldeias de pescadores estão horríveis nesta época - ao que parece, no tempo do capitão Slocum[24] não eram tão devastadas pela pobreza -, mas a paisagem e as praias são de fato insuperáveis e raramente há alguém à vista. A "areia branca" de Lota é verdadeira, mas existem pedras também, quase como no Maine - só que em geral com cactos gigantescos e outras plantas esquisitas, onde era de se esperar que só houvesse pinheiros. Na véspera do Ano-Novo, nosso anfitrião trouxe um telescópio magnífico e observamos Marte e a Lua, houve queima de fogos e tomamos champanhe. Se você e E. (e H)[25] vierem, vamos fazer tudo para levar vocês até lá para passar pelo menos um fim de semana - é uma casa de praia muito bonita, ao estilo de Turgueniev - colunas grossas e redondas com redes amarradas, um pátio com plantas crescidas demais e dunas branquíssimas e mais altas do que a cidade, como "moby dicks". Um dos dias de pescaria foi muito divertido. (Manoel, o anfitrião, tem um barco de pesca que parece saído de um Heming-way superHemingway - embora Manoel seja um tipo muito mais simpático.) O outro convidado, um jovem, pescou o que até agora achamos que é o maior marlim já pescado no Brasil. Todos ficaram muito entusiasmados, bem diferente dos meus dias de pescaria no Maine, em Nova Escócia ou na Flórida. Quando o monstro foi finalmente içado a bordo todos nos abraçamos, inclusive a tripulação, e depois tomamos uma demi-tasse de um café gostoso. Quando chegamos em terra, a esposa do rapaz, a cunhada e os filhos nos receberam no cais e a esposa me disse: "Ele andava muito mal-humorado porque não estava conseguindo pescar nada grande nesta temporada, por isso enquanto vocês foram pescar eu fui à igreja e acendi uma vela para ele." O fotógrafo de Cabo Frio apareceu para tirar fotos para as páginas de esporte do Rio (ou talvez para as colunas sociais...) e ficou tentando o tempo todo interromper a agitação e a conversa. "Atenção! Camera!", ficou falando, enquanto se metia no nosso caminho com o seu tripé.

Com muito amor,

Elizabeth



5 de maio [1959]

Querido Cal,

Tenho passado boa parte das últimas semanas no Rio para fazer um tratamento dentário; é por isso que ando tão lenta para escrever para você, se bem que levei sua última carta comigo para cima e para baixo, em duas dessas viagens. Tenho um dentista novo e simpático - escocês, criado no Brasil, que me serve cafezinhos na cadeira. O clube atlético português é um edifício do outro lado do pátio e nas nossas sessões de manhã cedo os homens de negócios estão lá fazendo ginástica ("Ah... lá vão os tarados por ginástica", diz o dentista) ao som do Danúbio Azul, tocado num piano. Numa extração do meu dente de siso rachado, havia uma assistente japonesa maravilhosa, igual a uma boneca, que tinha acabado de voltar de três anos em Yale. Adoro essa miscelânea internacional - por exemplo, acabei de vender o meu mg para uma jovem brasileira que trabalha na embaixada dos eua (depois de seis anos de uso e mais dois anos antes de eu comprar; vendi pelo mesmo preço que paguei) e tenho de esperar pelo dinheiro que vai vir do avô dela, em Xangai. Na minha última viagem tive de almoçar na embaixada com nossa amiga Vera[26] - na lanchonete. Foi estranho comer sanduíches ao estilo de lanchonete americana e ouvir tantas vozes americanas. Tive a impressão de que conhecia todo mundo, mas não conhecia ninguém. O adido cultural se uniu a nós; com muito medo, creio, de que eu fosse produzir livros sobre a sua última operação, que ele me contou. Porém parece que um funcionário itinerante do Departamento de Estado tinha acabado de passar por lá (esqueci o nome) e, quando perguntaram sobre você, ele ficou muito satisfeito e disse: "Esse é o tipo de pessoa que nós queremos; quem dera mais gente boa quisesse fazer essas viagens etc." Portanto acho mesmo que se você ainda quiser vir na primavera de 1960 vai ser fácil. Além disso, parece que já existe um ótimo grupo interessado em receber você na Bahia (Salvador) - que provavelmente seria um lugar ainda mais interessante para visitar, por um breve tempo - e assim, por favor, vamos planejar isso. Você fez algo a respeito disso enquanto esteve em Washington? Outro item: Vera, que passou por aqui numa viagem, me contou que há em Porto Alegre um clube muito grande de homens, que estudaram nos eua, chamado "O Sino Rachado". Não sei por que quando contei isso para uns amigos, eles ficaram muito histéricos - ao que parece há conotações obscenas em português. Ou talvez seja por isso mesmo.

Umas noites atrás, o nosso amigo que é político e editor de jornal, Carlos Lacerda, veio jantar. É pena que você não o tenha encontrado quando esteve no exílio porque é um ótimo exemplo do tipo do homem de poder - sobre o qual a maioria dos poetas é (ou sobre o qual eu sou) muito ignorante. Enquanto ele esteve aqui a Time não parou de telefonar pedindo uma entrevista com ele sobre o fato de, no fim das contas, Clare Boothe Luce[27] não vir para o Brasil. Ele foi muito astuto, mas eles não pararam de tentar torcer seus comentários para mostrar que os comunistas americanos estavam por trás de tudo isso, ou que havia aqui um golpe de comunistas etc. Estou curiosa para ver se alguma coisa vai sair publicada. Por acaso a gente também conhece o repórter - um americano de fato psicótico, casado com uma brasileira. Ele odeia o Brasil, os judeus, os negros e os eua também - uma escolha perfeita da Time.

Se as próximas eleições correrem do jeito como parece que vão correr, Carlos talvez consiga ser vice-presidente (ou até presidente, mais cedo ou mais tarde), ou pelo menos ministro da Educação. Talvez eu consiga que o Departamento de Es-tado do B[28]. convide você para vir aqui então! Ele foi muito divertido ao contar uma recente viagem a Portugal para trazer de volta o general Delgado, que se atreveu a desafiar Salazar nas eleições do ano passado.[29] (Não sei se você acompanhou algum desses fatos, mas saíram no noticiário internacional.) Delgado é um exilado muito malvisto por aqui, agora - e ficou três meses na embaixada do Brasil em Lisboa, antes disso. Parece que ele quase deixou todo mundo maluco lá na embaixada, se enfurecendo e esbravejando que era homem, e que não admitia ser privado de "vinho, mulheres e fados". No avião, ele quis dormir numa cama e alguém tentou achar a sua mala, o seu pijama etc., mas ele reagiu cheio de orgulho e disse: "Eu durmo nu." Foi recebido no aeroporto por um grupo muito pequeno de portugueses, jogou beijos & chorou, enquanto gritava: "Parem! Parem! É lindo demais!"

Amor de novo,

Elizabeth

[Papel de carta do hotel Othon Palace, decorado com arranha-céus. Uma seta desenhada por e.b. aponta para uma janela no 9º andar.]



[São Paulo,]

24 de setembro de 1959

Querido Cal,

Depois dos nossos longos e maçantes meses de leitura, gamão, jardinagem, culinária & leitura, a vida ultimamente anda quase fervilhante demais. Quando voltar para a minha machina vou tentar compor isso numa espécie de carta. Fomos a São Paulo para a abertura da Biende [sic] - 4 485 obras de arte -, dei minha atenção a umas 400. A melhor é de Francis Bacon - um verdadeiro horror; as outras em geral só conseguem dizer BU. Vamos voltar para o Rio hoje à tarde. Lota tem inúmeras tias, tios e primos por aqui. Dos mais de 66 netos, ela é a única que não casou & não pára de receber congratulações por isso. Reconheci Meyer Schapiro[30] no saguão e tomei coragem para ir falar com ele - & ele não podia ter sido mais simpático. Espero que possamos encontrá-lo de novo no Rio ou lá na serra, na casa. Os Calder[31] estiveram por um tempo no Rio & estivemos com eles muitas vezes. Ele é muito engraçado (mas sou a única que consegue compreendê-lo, pois ele apenas resmunga baixinho suas tiradas espirituosas). A esposa é um pouco parecida com o tio-avô dela, Henry James, acho! Eu queria saber se você já voltou para casa & como está passando. Nós vamos para Nova York em janeiro - vamos ficar até março. Se souber de um bom apartamento para sublocar em Nova York por esse período - digamos, alguém que queira uma pessoa para tomar conta do seu canarinho -, por favor, me avise. Vai ser maravilhoso ver você, mas eu gostaria que você estivesse aqui agora. A vista daqui & o meu cérebro estão repletos de arranha-céus, igual a isto.[32]

Com amor,

Elizabeth

 [Incluso: cartão-postal do Parque do Anhangabaú, São Paulo, uma paisagem de letreiros em neon nos prédios altos, com os dizeres goomtex.]

Esta palavra maravilhosa (significado desconhecido para mim) fica acesa de noite, é claro - na verdade nunca vi tantos letreiros elétricos na minha vida. Uma empresa japonesa fabrica os letreiros & são os maiores & melhores do mundo, creio - & e os mais incríveis.



15 de fevereiro de 1960

Querido Cal,

Os Calder estão voltando para o Carnaval. São três ou quatro noites: bailes, gente chique, boemia, os mais famosos bailes de bichas do mundo e desfiles - e Lota está ficando apreensiva. Sempre tentamos ir na noite das Escolas de Samba dos negros, mas só isso - porém os Calder gostam de ficar acordados até as seis da manhã e dançam, dançam, dançam, e bebem, bebem, bebem... É provável que eu fique fora durante uma parte do Carnaval - vou a Belém, na boca do Amazonas. Andamos tendo umas atividades sociais bem estranhas, no Rio, por um breve tempo, para dar uma mãozinha a um amigo nosso da embaixada: saímos num barco bem pequeno para ver a baía com o ex-governador de Nevada,[33] sua esposa e quatro filhos... Foi muito confuso: demos a direção errada para o capitão e fomos parar numa outra ilha; os quatro garotos enormes ficaram de cara amarrada; de Nevada, só conhecemos Reno... O rapaz da embaixada me disse que o governador se interessava por literatura. Não acreditei nisso, é claro, mas nossa conversa foi mais ou menos assim: "Soube que você escreve poemas." "Sim." "Olha, Lucius Beebe[34] é muito amigo meu." Coitados, eles foram mesmo muito simpáticos, estavam a caminho do Paraguai (Lota soltou um resmungo sem o menor tato quando lhe disseram) e agora já está acontecendo uma revolução por lá. O homem usava uma gravata-borboleta abotoada muito esquisita e, quando jovem, carregou ouro amarrado na cintura para a Wells Fargo.

Fomos a Cabo Frio outra vez passar o Natal e foi muito bom. Mas, para dizer a verdade, ultimamente andamos bastante tristes. Uma de minhas mais velhas amigas, que vinha nos visitar em abril, morreu de repente, de um ataque do coração[35] - em Nassau, que lugar para morrer - e os nossos vizinhos simpaticíssimos, o melhor historiador do Brasil e sua esposa, excelentes amigos de Lota, morreram num estúpido acidente de avião.[36] Um homem por aqui, ligeiramente excêntrico, depois que dois amigos morreram de ataque do coração, bateu com as mãos nos joelhos gordos e falou, revoltado: "Não existe mais a menor garantia!" Uma coisa para se pensar nesse momento.

Com muito amor, Cal (desculpe por não ter escrito antes - Lota também manda lembranças), & os melhores votos para a família.

Elizabeth



24 de fevereiro de 1960

Querida Elizabeth,

Já viu o filme franco-italiano Orfeu Negro, sobre o seu Carnaval? É um pouco colorido, exuberante, operístico e americano demais, porém a história é contada com uma surpreendente ternura; a gente se sente mesmo dentro do Carnaval e ouve a música dos seus discos.

Amor,

Cal



Abril de 1960

Querido Cal,

Esqueci de incluir isto ontem. Também me esqueci de dizer que em Belém conheci um jovem poeta, Joaquim Francisco.[37] Ele acabou de ganhar uma bolsa para passar um ano nos eua onde vai estudar poesia americana. Quando o encontrei, ele não sabia para qual universidade ia ser mandado, mas achava que ia partir do Brasil em junho ou julho. Achei-o adorável e tomei a li-berdade de lhe dar um bilhete para você e para uns outros poetas. Na certa ele nunca vai chegar nem a milhas de distância de você, mas se acontecer de aparecer, acho que você vai gostar dele. E tenho certeza de que não vai trazer nenhum incômodo - é muito educado. Tem só 22 anos, muito bonito, gentil e conhece de cor todos os poetas contemporâneos - o que deve lhe ter custado um enorme trabalho, morando em Belém -, e foi muito comovente. Leva tudo isso muito a sério e é agradável conhecer aqui alguém que acha que a poesia americana, no presente, é melhor do que a francesa, e que você é o melhor de todos. Agora estão fazendo uma coisa no Rio chamada "concretismo". Parecem as experiências anteriores a 1914, com um pouco de "transição" & Jolas, e uma pitada de Cummings. É terrivelmente triste. Fui entrevistada sobre o assunto em Belém e falei furiosamente que isso talvez tenha "um certo charme nostálgico", e Joaquim ficou encantado. Durante a entrevista (foi no Carnaval) entrou no café onde estávamos um mascarado com fantasia listrada de presidiário, que veio direto falar comigo. Estava com máscara de Chessman[38] e levava um livro preto com o rótulo LEX. Abriu o -livro debaixo dos meus olhos e disse: "Só Deus pode matar." Os dois poetas que estavam comigo ficaram em êxtase.

Estou ficando tão maçante quanto Verlaine com as minhas mudanças de opinião, mas me dei conta de que minhas queixas financeiras de ontem não caem muito bem depois de meus comunicados radiantes sobre o dinheiro que se pode ganhar no Brasil. Porém isso ainda é verdade, ando investindo meus pequenos lucros aqui para tentar ganhar mais algum dinheiro e, nesse caso particular, ele continuou a crescer no ano passado. Em dois ou três anos, devo ter mais, sem dúvida.

Acho que Harriet vai ser muito bonita. Lembranças minhas para a mãe dela.

Com amor,

Elizabeth



19 de maio de 1960

Vou tentar arranjar uns exemplares para você no primeiro dia da semana. Na semana que vem vamos para Ouro Preto (a cidade colonial mais perfeita, uma longa viagem de um dia, daqui), para passar uns dias lá. Ah, acho que uma vez mandei umas fotos para você de esculturas de Aleijadinho, o último e melhor escultor do barroco brasileiro. O nome quer dizer "pequeno aleijado"; não se sabe o que ele tinha, mas toda a sua obra da fase final foi feita, como a de Renoir, com as ferramentas amarradas nas mãos. Ouro Preto tem igrejas inteiras feitas por ele - pequenas, mas lindas.

Mande meu amor para as suas senhoras - e muito para você também.

Elizabeth

 J
(Continua na próxima edição de piauí.)




[1] Cal, de Calígula, era o apelido que Robert Lowell tinha desde a infância devido ao seu temperamento difícil.



[2] O brasileiro Sérgio Bernardes (1919-2002).



[3] Na verdade, Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática, em 1935.



[4] A poeta americana Marianne Moore (1887-1972).



[5] O poeta americano Randall Jarrell (1914-65).



[6] Este livro de Randall Jarrell, de 1953, inclui a resenha dele de North & South, de Elizabeth Bishop.



[7] Minha Vida de Menina (RJ: José Olympio, 1942) foi traduzido sob o nome The Diary of "Helena Morley" (Farrar, Straus, and Cudahy, 1957).



[8] Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970).



[9] Augusto Mário Caldeira Brant (1876-1978).



[10] Dizem que as últimas palavras de Goethe no leito de morte foram "Luz, mais luz!".



[11] A crítica, ensaísta e editora Elizabeth Hardwick (1916-2007), casada na época com Robert Lowell.



[12] "Manuelzinho".



[13] Refere-se ao movimento do ministro da Guerra, marechal Lott, para garantir a posse de Juscelino Kubitschek, ameaçada por um movimento militar e civil no qual se destacava Carlos Lacerda.



[14] Carlos Lacerda.



[15] Ernest Jones, A Vida e a Obra de Sigmund Freud (1989).



[16] Francisco Negrão de Lima (1901-81).



[17] Davi e Betsabá, dirigido por Henry King (1951).



[18] Amy Lawrence Lowell, poeta americana (1874-1925).



[19] Look Back in Anger, peça do dramaturgo inglês John Osborne (1929-84), intitulada em português Geração em Revolta. The Unpublished Opinions of Mr. Justice Brandeis: The Supreme Court at Work é de -Alexander M. Bickel e Louis Dembitz Brandeis (1957).



[20] O escritor católico Alfredo Lage (1904-1973).



[21] Virginia Peckham Ovalle foi casada com o compositor e poeta Jayme Ovalle (1894-1955). Autor de O Santo Sujo: A Vida de Jayme Ovalle (2008), o jornalista Humberto Werneck esclarece que, depois de viúva, Virginia teve um "breve affair, sem maiores consequências", com Alfredo Lage.



[22] Segundo Humberto Werneck, Virginia Ovalle nunca morou com Alfredo Lage.



[23] O poeta americano William DeWitt Snodgrass (1926-2009).



[24] Joshua Slocum, Sailing Alone Around the World (1900).



[25] Elizabeth Hardwick e a filha dela com Lowell, Harriet.



[26] Vera Pacheco Jordão (1910-1980), jornalista e escritora, foi casada com o editor José Olympio.



[27] A mulher de Henry Luce, o criador e dono da revista Time.



[28] Ministério das Relações Exteriores.



[29] Humberto da Silva Delgado concorreu à presidência de Portugal com o almirante Américo Tomás, candidato de António de Oliveira Salazar nas eleições de 1958. Depois que perdeu, ele foi expulso das Forças Armadas e pediu asilo na embaixada brasileira, antes de partir para o exílio.



[30] Meyer Schapiro (1904-1996), crítico de arte.



[31] Louisa James Calder e o artista plástico americano Alexander Calder (1898-1976).



[32] O papel de carta é enfeitado na margem esquerda e embaixo com imagens de arranha-céus, que invadem o texto de e.b.



[33] Charles H. Russell (1903-1989), governador de 1951 a 1959, que liderava a missão da International Cooperation Administration para o Paraguai.



[34] O colunista de moda Lucius Beebe (1902-1966) publicou um livro de poemas, Corydon and Other Poems (1924).



[35] Marjorie Carr Stevens morreu em 21 de outubro de 1959.



[36] Octávio Tarquínio de Sousa e sua esposa, a escritora Lúcia Miguel Pereira, morreram em 22 de dezembro de 1959.



[37] Joaquim Francisco Coelho.



[38] Caryl Chessman, escritor condenado à morte, cujo caso se tornou célebre para os oponentes da pena capital.