A jovem autora de Shangrilá comenta aqui como é seu processo de criação de personagens e da história, permitindo-nos acompanhar os bastidores de sua escrita. Veja que interessante.

O arcabouço e a alma

Costumo dizer que minha escrita divide-se em duas fases bem distintas: uma interna, que independe de qualquer instrumento para ser consumada, e uma externa, que ganha cores e vida através de uma tela, onde dedilho as palavras que, por dentro, já ecoavam.

Na primeira fase, que se passa dentro de meu imaginário, crio inicialmente os cenários e logo os povoo com as personagens principais, dando-lhes formas, semblantes, olhares, vozes, gestos, nomes e sobrenomes. Uma vez esculpidos os corpos e personalidades, passo alguns dias pensando, vendo, ouvindo música por elas, olhando paisagens, tentando sentir o que sentiriam diante do mundo, da vida, de sua época, de determinadas circunstâncias e, sobretudo, em presença umas das outras. E é justamente quando consigo estabelecer estas relações, que crio o enredo principal. Portanto, antes de concluir a primeira fase, sei exatamente quem são as personagens – interna e externamente –, como irão se conhecer, o que vai aproximá-las e aonde irão chegar. Enfim, como se pintasse um quadro, faço um esboço de traços em meu imaginário, rabiscando um norte para a história e deixando entreabertos os caminhos que irão levá-las ao final antevisto. É o que me compete na primeira fase: dar arcabouço à história.
A segunda fase, por sua vez, começa justamente quando já compreendo e domino tanto o universo individual de cada personagem, quanto o universo externo, ou seja, aquele que as circunda em forma de cenário e circunstâncias. Nestes termos, quando finalmente me sinto apta, sento-me diante de uma tela – de computador, é claro – e é quando passo a utilizar-me das palavras para dar vida ao enredo que idealizei. Em uma metáfora, poderia dizer que a segunda fase é quando, realmente, fazendo uso de meus pincéis – que são as palavras – passo a dar cores ao “quadro” que arquitetei. Geralmente, com as tintas primárias, traço, num primeiro parágrafo, uma cena forte e que tenha me marcado emocionalmente enquanto eu ainda estava na primeira fase. E é partindo desta cena que deixo vir à tona o restante da história. Ela nasce como se já estivesse pronta e parece ter vida própria. Os caminhos, outrora entreabertos, para a minha surpresa vão assumindo cores e contornos definidos e, sem que eu perceba, as etapas do enredo vão se abrindo e se fechando diante dos meus olhos. Minhas mãos, através da escrita, têm como função apenas a de abrirem as cortinas. O norte, aos poucos, se aproxima e, quando menos espero, vem o arremate do quadro numa última pincelada. O arcabouço, enfim, ganhou alma. O significado e o significante da trama já estão consignados, não apenas na última, mas em cada página. É quando, finda, eu assino a obra.
E foi assim – vencendo estas duas etapas – que escrevi diversos contos e também meu primeiro romance, intitulado Shangrilá. Para ser precisa, posso afirmar que a segunda fase de meu livro – ou seja, a escrita propriamente dita – durou cerca de um mês. Já a primeira fase, não sei precisar. Realmente não consigo definir durante quanto tempo lapidei em meu imaginário as personagens, nem em corpo, nem personalidades. Talvez, de algum modo, elas sempre tenham existido, tamanha a força que observei em cada uma delas, quando as libertei em cada página. O cenário, por sua vez, não fui eu que criei. Ele existe. É inteiramente real. Meu trabalho, neste aspecto, foi apenas o de retornar ao palco de minha infância, em viagens viabilizadas pela memória.
Durante estes dias, quase um mês, chegava em casa a noite e me debruçava diante da tela, vencendo, insone, as madrugadas. Buscando nas gavetas de minha memória, logo me via novamente nos arredores do Engenho Mata Verde – que não é o nome real da propriedade – e era por ali que eu colocava Mariana, Fabíola, Januária, Kimber, dona Antonieta, seu Antunes, Dionísio, Davi, Vicente, Aloísio, Dinorah e demais personagens, todos já bem definidos interna e externamente. E assim, com a força das palavras, deixava-os trilhar pelos caminhos entreabertos que, aos poucos, iam se definindo, cada um com a cor que lhe competia na peculiar aquarela. Quando dei por mim, tudo já estava ali, nada do que idealizei se perdeu. No final, todos se libertaram, inclusive eu.